Cearenses têm maior estresse em casa com mais pessoas isoladas
Pesquisa analisa percepção das pessoas quanto ao convívio com outros membros nos lares cearenses e qualidade da estrutura para o enfrentamento do período de isolamento social devido ao novo coronavírus
A vendedora Cleá Vasconcelos, 46, deixou a dinâmica intensa do ambiente comercial para manter o isolamento domiciliar com os três filhos e o marido, há pouco mais de dois meses, como forma de evitar o contágio pelo novo coronavírus. O dia foi trocado pela noite e, desde então, as demandas da casa somadas às incertezas do futuro resultam no aumento do nível de estresse. E quanto maior o número de pessoas na mesma casa, mais alto fica esse índice, como aponta pesquisa feita no programa de pós-graduação em Psicologia na Universidade de Fortaleza com 1.056 cearenses participantes.
Os questionários virtuais foram aplicados entre os dias 8 e 22 de maio para elaboração de seis estudos a respeito dos impactos da quarentena na vida dos brasileiros. No Ceará, o primeiro resultado mostra que 21,5% daqueles que dividem a casa com uma ou duas pessoas apresentam nível elevado de estresse. Esse número cresce entre os que compartilham a casa com três ou mais pessoas (31,6%) e com mais de quatro moradores (31,7%). Em média, vivem três pessoas em cada lar de Fortaleza, como contabiliza a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) 2019.
Além da quantidade de pessoas compartilhando o mesmo espaço, a pesquisa buscou a percepção dos cearenses sobre a qualidade estrutural de suas moradias. Do grupo, 984 (93,18%) avaliaram seus lares positivamente e 72 pessoas (6,81%) negativamente. Também foi perguntado aos participantes sobre a disponibilidade dos chamados "lugares especiais", como quintal e varanda, onde é possível relaxar. Responderam que sim 761 pessoas (72,06%); e outras 295 (27,94) que não possuem esses espaços.
Convívio
"A parte mais estressante da quarentena em família é não poder sair, a gente fica naquela ansiedade, tem hora que eu não sei o que fazer, aquela rotina de acordar e todos os dias e fazer as mesmas coisas", relata Cleá Vasconcelos. Logo pela manhã, ela ajuda Maria Julia, 6, com as aulas virtuais - um desafio devido à idade das crianças e aos problemas de conexão. A outra filha, Anna Caroline, 16, segue os estudos para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e Luis Yan, 18, da faculdade sem aulas presenciais.
Durante o dia, os incontáveis chamados por "mãe, mãe, mãe", a preocupação com a saúde dos filhos - todos alérgicos - e a organização da casa se tornam desgastantes para Cleá. "Eles ficam só dentro de casa, num apartamento bem pequeno, e quando cai a internet, imagina o mau humor?". No entanto, o relacionamento familiar também foi fortalecido no convívio mais próximo.
"É bom estar com a família, eu nunca tirei férias, então eles ficaram comigo, me chamam para assistir filme, fazer coisas bem simples, a gente cozinhou bastante, fizemos pizza, coisas que a gente não tinha oportunidade de fazer", lista Cléa.
Cynthia Melo, doutora em psicologia e coordenadora da pesquisa, analisa que "o nosso ambiente domiciliar, que antes era tão privado, foi invadido pelo ambiente de trabalho e de estudos". Assim, os resultados da pesquisa também mostram a necessidade, além do controle da propagação da doença, da promoção de cuidados com a saúde mental.
Saber as percepções dos cearenses sobre as moradias e como funciona o relacionamento familiar contribui para otimizar as políticas de atendimento de saúde mental esperadas por especialistas, como pontua Cynthia Melo. "Quando tudo isso passar a gente vai ter de juntar os pedaços e se reestruturar, ao sair de dentro de casa a gente vai ver as consequências de quem está vivendo isso, tem pessoas que estão em adoecimento, não só físico", conclui.
Emoções
Ainda na pesquisa, 61,6% dos participantes cearenses apresentaram bastante preocupação e 39% relataram sentir muita angústia. "Aquele mundo que eu conheço não existe mais, a gente está vivendo várias perdas, não apenas a morte definitiva do corpo, mas a perda da vida que tínhamos, da liberdade de sair, de trabalho e de estudo", comenta a pesquisadora.
Francisco Vieira, 29, percebe esse cenário desde que resolveu enfrentar a quarentena com os pais, três irmãos e uma sobrinha no município de Monsenhor Tabosa, no dia 20 de março. "É bem estressante porque eu moro em Fortaleza sozinho e tive que vir pro interior por conta da paralisação das atividades e por eu ser grupo de risco, (é difícil) até me readaptar a dividir espaço com outras pessoas", relata o agente de turismo.
Com a mudança, Francisco passou a dividir o quarto com os irmãos e, além da falta de privacidade, precisa lidar com os choques de horário, barulho, e falta de organização. Porém, compartilhar este período também tem seus aspectos positivos, como reflete Francisco, que lida com ansiedade. "Então, se por um lado não gosto muito de barulho, essas 'tretas' acabaram ajudando a esquecer pouco do caos que está no País afora, porque é um alento estar rodeado de pessoas que a gente ama".
Mudanças
Se privar do ambiente externo deixa saudade do contato com parentes, amigos, clientes e colegas religiosos, como lembra a contadora Ritamar Freire, 67. "Fico triste de não ir para igreja, isso me deixa muito agoniada. Dia de domingo eu fico assistindo à missa sem poder comungar e isso é muito ruim porque eu gosto das coisas da igreja", observa. Ainda assim, ela mantém as rezas e agradecimentos pela vida na rotina e nota que o estresse deixa de fazer parte do cotidiano com as duas filhas, dois netos e o genro que vivem no mesmo lar.
"Durante a minha vida toda eu nunca vi uma situação como essa, uma guerra, e não apareceu nenhuma vacina, mas sim muitas fake news sobre medicamentos. Eu só saio mesmo se for extremamente necessário", conta.
Adaptar a rotina e respeitar os espaços individuais facilitam o período de restrições de circulação, como destaca Cynthia Melo. "Ter um lugar para chamar de meu, de acolhimento, é muito importante porque quando tem algum estresse eu me recolho para aquele lugar. Muitas pessoas falaram que é o quarto, outras falaram sobre a varanda, sobre o jardim. A gente viu como tem sido importante ver o sol e a rua", finaliza Cynthia.