Brincadeira ao ar livre resgata essência do ser-criança

Em comunidades da Regional II de Fortaleza, a vida vai se desenhando a partir do mar desde cedo, tendo a praia como quintal ou varanda de casa

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br
Legenda: No sobe e desce do barco, objeto tão presente na rotina de filho de pescador, André Filho, 8, brinca de ser super-herói e toma posse da praia-lar
Foto: FOTO: NATINHO RODRIGUES

O carrinho de controle remoto em casa até seduz, mas a lei natural do Universo também se impõe quando o assunto é brincar: nada é mais forte do que o mar. Com os ainda breves 8 anos de vida, André Filho já segue a norma à risca: tira a camiseta com pressa, nem hesita, e já corre para o pedaço de oceano do Mucuripe, despido do medo que insiste em afogar tantos adultos.

A descoberta da praia como lugar de diversão é, para muitos pequenos, um resgate do ser-criança - e supre a necessidade de equipamentos de lazer que muitas vezes nem existem.

Levar os filhos à Beira-Mar, aliás, é rotina-essência de Carlos André da Costa, pescador há 15 dos 44 anos de vida, para "evitar que eles fiquem presos pela tecnologia em cima do sofá". Afinal, no tempo dele, "era bola e tudo que é brincadeira na rua, não queria nem voltar", como relembra num misto de orgulho, saudade e lamento. Hoje, por sorte, assiste no caçula a energia daqueles tempos. "Eu precisei secar os pneus da bicicleta pro André Filho parar em casa!", sorri, enquanto o pequeno constrói um dos incontáveis castelos que já ergueu na areia - sob o sol escaldante que faz o corpo franzino de pele bronzeada brilhar.

Surfe

É mesmo coisa de menino-peixe, essa de ter olho avermelhado o tempo todo, cabelo desbotado, beirando o loiro, e pele morena de sol - descrição fiel à imagem de Marcos Kauã, 11, que reveza entre "brincar de bola e skate" com o irmão mais novo, em casa, e fazer vezes de professor de surfe na praia, local onde mais quer estar, neste feriado tão dele.

Outro que já tem hora marcada para a diversão, como compromisso sério, é Walisson da Silva, 11. Para ele, o dia começa sempre do mesmo jeito há pelo menos dois anos: acorda, pega a prancha de surfe emprestada de um projeto social da comunidade do Titanzinho, desliza pelas ondas e "sente alegria". À tarde, escola. Amanhã, de novo. E nada além.

Se tivesse de se mudar dali, de onde vê o oceano pela janela de casa, "não dava não". Porque "o que mais quer fazer na vida quando crescer é surfar", e o presente que queria neste 12 de outubro ele nem pestaneja antes de revelar: uma prancha e ondas perfeitas. Chega a sentir dó das crianças que "só ficam no celular, porque elas perdem a infância", enquanto ele pode "brincar, ganhar a praia, ter vários amigos".

Essas companhias para o pega-pega, esconde-esconde e para jogar bola nas areias do bairro Serviluz também são o que empolga a incansável Jamile Matos, 8, para quem a praia em si é a brincadeira preferida. Seja cavando buraco que "vira piscininha", seja desenhando para a onda desmanchar: mãos e pés na terra bastam para a diversão ser completa.

"Eu sinto uma coisa legal aqui. Uma alegria. Por aqui não tem pracinha com parquinho, mas o mais divertido de ser criança é brincar na praia", declara Jamile, com o olhar sempre mais falante que as palavras.

Tecnologia

Para o professor do Instituto de Educação Física e Esportes (Iefes) e coordenador do Laboratório de Brinquedos e Jogos (Labrinjo) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Marcos Teodorico de Almeida, não só a tecnologia afastou as crianças da rua e dos ambientes naturais, mas também a forma como as cidades foram planejadas e construídas. "O sentimento de pertencimento está intimamente ligado à segurança pública, ao planejamento arquitetônico da cidade, a políticas públicas que favoreçam a vivência de interações lúdicas significativas, inclusive na zona de litoral, onde é possível viver experiências de forma gratuita".

O professor ressalta, porém, que a ideia de gratuidade é relativa, já que o acesso das famílias inclusive a espaços de lazer gratuitos é condicionado por fatores socioeconômicos.

"Mesmo que a gente tenha praias, parques e praças equipadas, protegidas e seguras, precisamos de mobilidade, condições para que essas famílias e crianças possam se mover dos seus espaços de território até outros. Daí a importância de restaurar equipamentos em todos os pontos da cidade. As crianças trocariam qualquer videogame para ter brincadeiras com outras", aposta.

De acordo com a Regional II, os bairros da região, entre os quais o Mucuripe e o Cais do Porto (onde fica o Titanzinho), dispõem, atualmente, de "dez áreas de lazer com parques infantis instalados, para democratizar o acesso ao lazer público e garantir os direitos das crianças".

Resgate

Para o instrutor de surfe e morador do Titanzinho João Carlos "Fera", 50, é o espaço natural e os projetos sociais da região que dão essa garantia. "O mar substitui as praças e quadras poliesportivas que não existem no Serviluz. A praia foi feita por Deus e é essencial para que os garotos tenham acesso ao lazer. O mar é o resgate da cidadania", define João Carlos Fera.

Iniciativa

A Regional II aponta o projeto Bom de Fortaleza, que acontece em praças da Capital e inclui atividades e contação de histórias ao público infantil, como uma forma de "promover e dar acesso à cultura e às manifestações artísticas das comunidades locais, ocupando os espaços públicos".

Festa

Nesse domingo (13), a Praça da Encosta do Morro Santa Terezinha, no bairro Vicente Pinzón, recebe programação especial em alusão ao Dia das Crianças. As atividades têm início às 17h30 com presença de palhaço, espetáculos e cantoras infantis, além de contação de histórias.

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