Após 38 anos do primeiro caso, Aids ainda desafia pacientes e sobrecarrega sistema de saúde no Ceará
Estado tem cerca de 30 mil pessoas vivendo com HIV/Aids que cotidianamente enfrentam preconceitos, exclusão social e demora em atendimentos nos serviços de saúde.
Em 1983, era diagnosticado o primeiro caso de Aids no Ceará. Nos últimos 38 anos, pacientes que vivem com a doença atravessaram diversos estigmas e, ainda hoje, pelejam contra o preconceito. Esta quarta-feira, 1º de dezembro, marca o Dia Internacional da Luta contra a Aids, quando essa população exige melhorias nos serviços de assistência.
A doença, sigla para “síndrome da imunodeficiência adquirida” em inglês, é provocada pelo estágio mais avançado do vírus HIV, quando o sistema imunológico fica fragilizado. No entanto, nem sempre quem é infectado pelo vírus desenvolve a Aids, podendo viver anos sem apresentar sintomas.
Veja também
Segundo o último boletim epidemiológico da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), da década de 1980 a dezembro de 2020, foram notificados 14.647 casos de Aids no Ceará, com média anual de 930 novos casos nos últimos 5 anos. De janeiro a outubro de 2021, foram confirmados 462 casos, conforme a planilha de notificação.
A Pasta informa que o número vem diminuindo desde 2012. Também pondera que houve “queda importante no ano de 2020, provavelmente em decorrência da pandemia de Covid-19, que limitou os diagnósticos nos serviços de saúde”.
Até 2020, conforme a Sesa, o Ceará tinha 19.604 pessoas vivendo com HIV/Aids (PVHA) em tratamento antirretroviral no Estado. Esses medicamentos agem inibindo a multiplicação do HIV no organismo e, consequentemente, evitam o enfraquecimento do sistema imunológico.
- Superintendência Fortaleza: 15.426
- Superintendência Norte: 1.560
- Superintendência Sertão Central: 549
- Superintendência Cariri: 1.371
- Superintendência Litoral Leste: 698
Cleiton Freitas, representante da Rede Nacional de Pessoas vivendo com HIV e Aids no Ceará (RNP+CE), porém, estima que o número chegue a 30 mil pessoas sujeitas diariamente a processos de exclusão pelo preconceito, resistente mesmo após quatro décadas da doença no Estado.
Além das dificuldades “no trabalho, no dia a dia, com familiares e amigos”, os pacientes precisam lidar com dificuldades de atendimento piorados durante a pandemia, com consultas atrasadas, serviços desativados e sobrecarga de profissionais diante de uma alta demanda.
“Os medicamentos são de alta tecnologia, não causam mais efeitos colaterais e trazem qualidade de vida bem melhor, mas esse acesso não tem chegado. Os gestores precisam entender que a Aids não é só no dia 1º de dezembro, e essas as pessoas precisam de assistência especializada o ano todo”, lembra Cleiton.
Trabalhando há 11 anos com esse público, Ronildo Oliveira, coordenador da Associação Caririense de Luta contra Aids, destaca que no interior do Estado a situação é ainda mais complicada do que na Capital pela ausência de serviços especializados nos municípios.
Veja também
Pacientes do Centro-Sul costumam ser remetidos a Fortaleza e enfrentam recusas diante de um sistema já sobrecarregado. “Sempre recomendam: ‘façam o teste, descubram precocemente’, mas como eles vão se tratar?”, questiona. “O Ceará já foi vanguarda e hoje temos um recuo”.
Para ele, a continuidade expressiva de diagnósticos mesmo durante a pandemia indica a manutenção do sexo desprotegido.
Percebemos totalmente a ausência de campanhas de prevenção. Hoje, nem mesmo nas vésperas do dia de conscientização, não vemos campanha nem distribuição em massa de preservativos
O representante alerta que a Aids não tem cura e mata. Nos últimos cinco anos, a síndrome no Ceará tem vitimado mais de 300 pessoas por ano, de acordo com Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM):
- 2016: 367
- 2017: 358
- 2018: 326
- 2019: 327
- 2020: 333
Em outubro deste ano, o Fórum do Movimento Social de Luta Contra a Aids do Estado do Ceará elaborou uma carta aberta denunciando o “desmantelamento da política de AIDS e falta de assistência” às pessoas vivendo com HIV/AIDS atendidas no Estado.
Dentre as principais demandas, estão a lentidão na reforma e ampliação do Ambulatório do Hospital São José, em Fortaleza, e a defasagem no número de profissionais alocados para o atendimento aos pacientes.
Rede de atendimento
"A gente reconhece a necessidade de replanejar, ter mais profissionais e de inserir, dentro da atenção primária e das policlínicas, o atendimento aos pacientes", frisa Lino Alexandre, médico infectologista e assessor especial do Sistema Estadual de Análise de Dados (Sead) da Sesa.
Entre os motivos das dificuldades de atendimento, está a falta de profissionais para compor as equipes no atendimento especializado. "Existe um número restrito de infectologistas formados no Estado, envolvidos no tratamento não só do HIV, mas de hepatites e outras doenças", afirma.
Lino ressalta os atendimentos feitos em ambulatórios nas faculdades de medicina, públicas e privadas, além dos hospitais da rede estadual. O serviço também abrange mulheres grávidas diagnosticadas com a doença.
O acompanhamento dos pacientes é feito com psicólogos, enfermeiros, terapeutas e médicos com apoio do Serviços Ambulatoriais Especializados em HIV/Aids (SAEs). "Os SAEs se estendem ao interior como Icó, Tauá, Juazeiro do Norte e Crato, que favorecem essa rede de assistência", destaca.
Em Fortaleza, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) informa que há nove SAEs com equipe multiprofissional de saúde.
"Este ano, com o objetivo de ampliar e garantir o atendimento, foram contratados quatro clínicos gerais para atuar nas Policlínicas. No total, estas unidades possuem quatro clínicos e quatro infectologistas, que têm conseguido suprir a demanda", diz o órgão.
Sobre as críticas à desativação dos SAEs Anastácio Magalhães e Nossa Senhora da Conceição, a SMS respondeu que "tem reestruturado o atendimento em serviços especializados, migrando os atendimentos desta área, antes ofertados na atenção básica e hospitalar, para as quatro Policlínicas".
Nesta quarta-feira (1º), a Pasta abre a programação do Dezembro Vermelho, para conscientização sobre a doença, com seminários e ações educativas.
Como é a transmissão e o diagnóstico da Aids?
Na divisão territorial do Ceará, o boletim da Sesa explica que as regiões de saúde Norte e Sertão Central tiveram redução da Aids, e Fortaleza e Litoral Leste mantiveram estabilidade. A única com aumento foi a do Cariri, cuja taxa de detecção passou de 2,1 para 10,3 a cada 100 mil habitantes, entre 2009 e 2019.
Em 2021, de janeiro a outubro, foram notificados 1.084 casos de infecção por HIV, sendo 837 homens (77% do total) e 247 mulheres (23%). Do total, 710 casos (65%) ocorreram na população mais jovem, de 20 a 39 anos de idade. O diagnóstico da infecção é feito a partir de testes rápidos, disponíveis em unidades básicas de saúde
Segundo o infectologista Érico Arruda, o HIV é transmitido pela relação sexual em mais de 90% dos casos, embora também possa ocorrer por transfusão sanguínea, pelo compartilhamento de seringas (contaminadas), durante a amamentação e durante o parto.
Além disso, segundo o especialista, mesmo se houver contaminação, o exame só revela o vírus após algum tempo, a chamada “janela sorológica”, quando o organismo produz anticorpos detectáveis no teste. Atualmente, esse período é de 22 dias.
Por isso, Arruda recomenda fazer o teste 22 dias depois da relação de risco. A camisinha é apontada como a principal forma de prevenção da infecção.
Porém, se houver consciência da relação sexual de risco, é possível fazer a profilaxia com medicamentos antirretrovirais.
- PreP (Profilaxia Pré-Exposição): uso preventivo de medicamentos antes da exposição ao vírus do HIV, mas só é destinado a populações-chave, que concentram o maior número de casos de HIV no país, conforme o Ministério da Saúde.
- PEP (Profilaxia Pós-Exposição): orienta-se a utilizar nas primeiras 2 horas, embora venha mostrando efetividade até 72h após a exposição, e deve ser tomada por 28 dias.
A infecção é praticamente assintomática até evoluir para Aids. Nesse quadro, os sintomas incluem perda de peso, febre ou sudorese noturna, fadiga e infecções recorrentes.
Outras necessidades
A saúde não é a única demanda das pessoas que vivem com HIV/Aids no Ceará. Assistência social, emprego e renda também estão entre as principais necessidades dessa população, sobretudo daquela que vive em alta vulnerabilidade social.
“Trabalho é um tema que desgasta muito a vida de alguém com HIV. Hoje, você tem dificuldade de ingressar em uma empresa porque precisa, de 3 em 3 meses, ou de 6 em 6 meses, se ausentar para fazer exames de rotina. Seu empregador fica se perguntando porque existe essa necessidade, e você não pode levar um atestado porque a empresa vai ficar sabendo que você é soropositivo”, ilustra Cleiton Freitas, da RNP+CE.