Ansiedade e impulso podem ser fatores para a quebra do isolamento

Adolescentes e jovens adultos se reúnem aos fins de semana, na Praia dos Crush, sem distanciamento mínimo ou uso de máscaras, medida estabelecida por lei. Especialistas analisam comportamento e alertam para os riscos

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Local de intensa movimentação de banhistas, 'Praia dos Crush' gera preocupação
Foto: THIAGO GADELHA

Já faz algum tempo que a Praia dos Crush, na área da Praia de Iracema, em Fortaleza, registra grandes aglomerações aos fins de semana. No último domingo (24), não foi diferente: milhares de pessoas, a maioria jovens, ocuparam a faixa de areia para confraternizar com amigos ou companhias que dão nome ao local, mesmo durante a pandemia da Covid-19. Na praia, a reportagem conversou com quatro grupos de adolescentes e jovens adultos para compreender o porquê da saída de casa mesmo com a doença ainda não controlada. A pedido dos entrevistados, nenhum terá o nome identificado.

Antes, um lembrete: até este sábado (28), o Ceará registrou 8.382 mortes por Covid-19 e 214.094 casos confirmados da doença. Os dados são da plataforma IntegraSUS, alimentada pela Secretaria Estadual da Saúde (Sesa). Em Fortaleza, foram 46.631 ocorrências e 3.777 mortos. Além disso, entre junho e agosto, as pessoas de 20 a 29 anos foram, proporcionalmente, as que mais tiveram novas contaminações pela doença. No grupo etário, são 36.466 casos e 88 óbitos.

Na Praia dos Crush, uma confusão de sons se mistura ao quebrar das ondas em frente ao Centro Cultural Belchior: são risadas, anúncios de vendedores de lanche e, principalmente, músicas de caixas de som tocando funk, brega funk e forró, que levam a cantorias e danças dos menos desinibidos. Os eletrônicos ficam lado a lado com coolers, garrafas de vinho e cachaça. Apesar de alguns grupos ficarem mais afastados, poucos seguem os dois metros mínimos de distanciamento recomendado por autoridades sanitárias.

Praticamente ninguém utiliza máscaras no local, apesar de lei estadual exigir seu uso fora de casa - sob pena de multa de até R$ 300 em caso de descumprimento - e da presença às dezenas de agentes da Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis), Guarda Municipal, além da Polícia Militar do Ceará. Quem chegava com a peça guardava-a nos bolsos ou mochilas.

"Assim, né, a quarentena acabou. Tá todo mundo saindo de casa, eu que não ia ficar", dispara uma garota de 18 anos num grupo de seis pessoas. Sem máscara, ela insistiu em dizer que o material "incomoda demais". "Pra quem usa óculos como eu, é horrível porque embaça a lente", confirma uma amiga, que ainda dá bronca na outra: "Tu não só se preocupa porque não conhece ninguém que morreu".

Segundo a psicóloga e analista do comportamento Carolina Ramos, a transição da adolescência para a vida adulta é marcada por uma busca por identidade e aceitação desenvolvida principalmente pela convivência com pares semelhantes. Para "lutar contra uma angústia típica da fase, de rejeição e solidão", os jovens tratam suas necessidades de bem-estar como prioridade.

"O longo prazo se torna algo sem significado porque o imediato é mais concreto. Nessa busca por identidade, autonomia e recompensas, eles podem não se sentir vulneráveis mesmo em situações de risco, por isso acabam tendo comportamentos impulsivos", observa a especialista.

Em outro grupo de três rapazes entre 21 e 24 anos, existe a consciência de que a pandemia não acabou, mas a ida à praia funciona como um prêmio por eles terem cumprido o isolamento desde março. "Não é questão de rebeldia contra o Governo. Só que chega uma hora em que a gente quer desopilar, desestressar", desabafa um deles. "Fico sem máscara pra poder respirar, dar uma renovada. Quando vou pra casa, uso no ônibus junto com álcool em gel", garante. "Não uso porque estou bebendo", simplifica o amigo ao lado, para quem a segunda saída após o isolamento marca também a recuperação de uma lesão à bala que sofreu na coxa esquerda, hoje cicatrizada. "Tava com saudade, a gente não quer ficar preso em casa", afirma.

Contudo, a aglomeração em um mesmo espaço pode cobrar seu preço no futuro. O risco de contaminação na praia, como já alertou o infectologista Roberto da Justa, integrante do Coletivo Rebento - Médicos e Médicas em Defesa da Ética, da Ciência e do SUS, está relacionado justamente às formação de grupos, já que a troca de secreções e gotículas de saliva é favorecida pela proximidade.

Legenda: Frequentadores ignoram obrigatoriedade das máscaras de proteção
Foto: Helene Santos

Num terceiro grupo de mulheres entre 20 e 25 anos, uma das integrantes tinha uma mão no copo de vinho e o outro na consciência. "Eu sei que a pandemia não acabou e que eu tô errada. Mas, tem vez que a gente é levada pelo momento, pela empolgação", justifica por ter aceitado o convite das amigas. Para ela, a máscara não é usada na praia "porque dá calor e, às vezes, falta de ar". Questionadas sobre por quanto tempo seguiram o isolamento, duas disseram ter começado a sair recentemente. A terceira revela nunca ter parado com os "rolês" em festas privadas, todas sempre com "um monte de gente".

A psicóloga Carolina Ramos também avalia que o comportamento coletivo influencia na dimensão individual. "O grupo acaba sendo o modelo. Se eu usar a máscara, por exemplo, vão me julgar, achar que sou bobo. Eles têm esse medo do julgamento", afirma. Ela também aponta que o isolamento pode ampliar sentimentos desagradáveis e a ansiedade, já que a rotina da maioria desses jovens foi retirada pela pandemia. "O coletivo é o grupo deles, é como se completasse um vazio. Outra coisa é que o jovem tem uma crença de que sabe o que é melhor pra ele, e isso faz com que continue a se engajar em comportamentos que podem colocá-lo em risco, como não usar máscara e fugir do isolamento", explica Carolina.

A Agefis informou, por nota, que as multas pela falta do uso de máscaras não são aplicadas pela Agência. Também disse que, de sexta a domingo, reforça a fiscalização na Av. Beira-Mar, "com monitoramentos contínuos para evitar aglomerações", orientando permissionários a cumprirem as recomendações de não ocuparem a faixa de areia com mesas, cadeiras e guarda-sóis, e abordando a população para distribuir máscaras de tecido e álcool em gel 70%.

A técnica da Vigilância Sanitária da Sesa, Jane Cris Cunha, explica que o interesse do Estado é educativo, não punitivo. Caso a pessoa abordada coloque ou ajuste a posição da máscara, a multa não é lavrada. "Temos observado que, onde existe aglomeração, há muitas pessoas sem máscaras, mas elas ainda salvam vidas. Enquanto não houver vacina, temos de fazer nossa parte ao sair de casa", reforça.

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