Os dados oficiais indicam que, ao menos, 478 mil casos de Covid já foram confirmados no Ceará, até o momento. O total de testes realizados supera a marca de 1,5 milhão. No entanto, ainda que no Ceará as estruturas para a realização de exames, hoje, sejam melhores do que na primeira onda da pandemia, entraves persistem, e geram situações nas quais, mesmo com sintomas, a população não acessa a testagem.
No atual momento, de ampliação de casos e lotação de hospitais, qual o impacto de não fazer o teste?
Uma das consequências, afirmam especialistas, é tornar imprecisas as informações do poder público sobre o verdadeiro número de casos em cada território. E isso, afeta a percepção da gestão pública sobre o cenário epidemiológico, pois, com a ausência de testagem, os registros oficiais de infectados podem ser menores que o número real, o que configura a subnotificação dos casos.
Essa situação pode ter como efeito um brusco crescimento de novas hospitalizações sem ser antecedido por um aumento no número de novos casos.
Além disso, ao não confirmar o diagnóstico, a pessoa contaminada pode não buscar, nem receber a assistência necessária para tratar os efeitos da doença. O que pode agravar o quadro. Outra dimensão, é que ao não fazer o teste, por não ter a confirmação, a pessoa infectada pelo vírus pode não se isolar e acabar ampliando a propagação do vírus.
Gargalos para fazer o exame
A não realização dos testes ocorre por motivos diversos e está atrelada às dificuldades de agendamento e acesso, incluindo os custos, os deslocamentos e a disponibilidade; e também a questões comportamentais, como receio de sair de casa, e cenários nas quais a avaliação feita pelos envolvidos é a de que não há problemas em não realizar a testagem.
Algumas dessas limitações foram mostradas pelo Diário do Nordeste, esse mês, com a divulgação que pacientes com suspeitas da doença enfrentam obstáculos para marcar exames nas farmácias de Fortaleza, devido à alta procura.
Tais situações ocorrem, por exemplo, em famílias nas quais um dos membros testa positivo e os demais, embora estejam convivendo, não fazem o teste. A professora Lúcia Girão, moradora da Fortaleza, conta que, após a contaminação do marido, diversos fatores interferiram para que demais parentes, apesar dos sintomas, não realizassem os testes.
O esposo de Lúcia teve Covid e precisou de internação. Ela cuidou dele enquanto estava em casa. “Ele ficou isolado no quarto, mas de alguma forma, a gente continua tendo contato. Ele abria a porta do quarto, é muito próximo à cozinha”, explica.
Quando o marido foi internado, ela começou a ter os sintomas da doença. Uma filha e um genro também. Nenhum deles fez o teste. Os dois parentes fizeram tomografias, e a da filha evidenciou comprometimento do pulmão. Lúcia conta que sentiu, inicialmente, indisposição, mas não foi fazer o exame porque eles já imaginavam que fosse Covid. "Não fui porque eu tinha certeza que já tinha tido”, reforça.
Dias depois, perdeu o olfato e o paladar, e em seguida, teve vertigem e pressão alta. Então, procurou ajuda médica e como haviam passado muitos dias, desde que imaginava ter sido contaminada, seguiu sem fazer o teste.
Ceará aumentou número de testes
Na primeira onda, os gargalos relacionados à testagem eram evidentes, sobretudo, no começo da pandemia, quando os recursos eram completamente limitados. No Ceará, dados do Integrasus apontam que, entre março e maio de 2020, em nenhuma semana epidemiológica foram feitos mais de 9 mil testes. No entanto, no decorrer dos outros meses esse número cresceu.
Desde o início da segunda onda, em outubro, em todas as semanas foram realizados mais de 10 mil testes e a última semana de janeiro (de 24 a 30) foi a que teve o maior número de exames, com 39.676 testes.
Atualmente, na rede pública, a Secretaria Estadual de Saúde (Sesa) disponibiliza a realização de exames no Centro de Testagem na Praça do Ferreira, em Fortaleza, e em Maracanaú, e nos drive-thru no Hospital Geral de Fortaleza (HGF) e no shopping RioMar Kennedy. Segundo a Sesa, qualquer pessoa, mesmo sem sintomas, pode ter acesso ao teste na Praça do Ferreira e em Maracanaú, basta ter documento com foto. Nas unidades são feitos até 200 exames por dia.
Nos drive-thru o atendimento precisa ser agendado pelo Saúde Digital e pelo Ceará App. Nesses locais, para realizar o teste, é preciso ter sintomas leves ou moderados há no mínimo 3 e no máximo 7 dias. Já nas farmácias, o valor dos testes varia conforme a técnica utilizada. Alguns chegam a custar entre R$ 90,00 e R$ 150,00. Por conta da dificuldade de agendar os exames, em algumas situações a indicação tem sido ir à farmácia para conseguir uma vaga - que nem sempre é para o mesmo dia.
Identificação de potenciais transmissores
A epidemiologista da Associação Brasileira de Epidemiologistas de Campo (ProEpi), Daniele Queiroz, explica que “os testes são excelentes ferramentas que permitem identificar quais as pessoas são potenciais transmissores da doença”, e ao detectar essas pessoas, o principal objetivo é isolá-la.
“Ser contato de alguém que teve teste positivo, no geral, representa que deve haver isolamento deste indivíduo mesmo que não apresente sintomas, 14 dias após o contato. Este novo caso, ser testado ou não, não impactaria na transmissão se mantiver o isolamento. Mas, infelizmente, não é assim. E muitas pessoas, mesmo tendo contato com casos positivos, não realizam a quarentena ou isolamento”, avalia.
Questionada se nessa segunda onda há preocupações específicas com a subnotificação, assim como ocorreu na primeira, ela pondera que “talvez a pergunta seria se devemos nos preocupar com a subnotificação. A resposta é sim, pois se trata de uma nova onda de casos após a introdução de uma nova variante. A subnotificação mascara o cenário epidemiológico e deixa os gestores em apuros quando já se deparam com as UPAS e hospitais lotados de casos graves, sem tempo para planejarem a ampliação de leitos e assistência”.
Assintomáticos e pré-sintomáticos
A epidemiologista e doutoranda em Saúde Pública na Universidade Federal do Ceará, Kellyn Kessiene de Sousa, reforça que é importante diferenciar os assintomáticos dos pré-sintomáticos.
“Algumas pessoas podem não apresentar nenhum sintoma ao testar positivo para a Covid, mas, depois de alguns dias, passar a apresentar sintomas. Nesse caso, essas pessoas eram pré-sintomáticas quando fizeram o teste e passaram a ser sintomáticas após alguns dias”.
De acordo com ela, estudos sugerem que “o tempo entre o teste positivo e o início dos sintomas, nesses casos, pode variar de três a sete dias”. A transmissão do vírus, lembra Kellyn, também ocorre “nos casos assintomáticos e pré-sintomáticos, principalmente nos primeiros dias após a infecção. Isso porque o vírus, ao infectar uma pessoa, pode iniciar a replicação viral, ou seja, multiplicar-se dentro das células do aparelho respiratório, como o nariz e a garganta”.
Para ela, as incertezas evidenciam que a testagem em massa é uma boa estratégia, incluindo as pessoas que não possuem sintomas. Junto ao distanciamento social, reforça, “os testes de diagnóstico para o coronavírus se tornaram ferramentas essenciais”.
A epidemiologista destaca ainda que, tendo em vista o cenário da pandemia, na qual a transmissão já está sustentada, “a notificação serve mais como vigilância para avaliar a possibilidade de redução de casos”. E, portanto, “os assintomáticos parecem ser peça importante para a dispersão do vírus, tanto na perspectiva populacional, quanto no contexto econômico e dos serviços essenciais”.