Pandemia provoca 'paralisação' da pesquisa científica no Ceará

Com exceção das áreas correlatas à Covid-19, pesquisadores avaliam que outros estudos foram muito impactados, seja por falta de investimento ou por fechamento de laboratórios e impossibilidade de trabalho de campo

A jovem Milleyde Ponte havia organizado todo o seu ano de 2020. Com o projeto de mestrado aprovado pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Ceará (UFC), o período seria utilizado para a pesquisa científica. A ideia inicial da estudante era avaliar a segurança da totalidade das clínicas de hemodiálise do Estado, a fim de descobrir como estão sendo prestados os serviços a pacientes com doenças renais crônicas e no que poderia colaborar para melhorar os atendimentos. Mas havia uma pandemia no caminho.

A proposta de avaliar 17 clínicas em 14 municípios foi reduzida. Agora, Milleyde só pode dar andamento ao estudo com dados de três clínicas da Capital, cujas informações foram obtidas antes de tudo isso começar. "Se eu não tivesse esses dados, eu teria que mudar o tema da dissertação completamente. O que me deixou mais triste é que eu estava muito ansiosa pelos resultados da pesquisa e pelo impacto que ela teria em âmbito estadual, porque é diferente analisar uma clínica só e avaliar todas do Estado. Teria um impacto positivo", lamenta.

E o pior: por causa do cenário da doença, é praticamente inviável que ela consiga aproveitar o projeto para o doutorado. "Uma das coisas que eu ia avaliar era o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), se era feito de forma correta. Em meio à pandemia, tudo mudou. Se eu for fazer essa pesquisa depois, não vou conseguir os resultados fiéis porque muitos protocolos e rotinas mudaram".

Agora e depois

Embora não haja um número de quantos projetos de pesquisa na graduação e na pós foram impactados pela pandemia no Ceará, pesquisadores são unânimes na concordância de que alguns efeitos já estão sendo sentidos e outros ainda deverão aparecer. De acordo com a pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Nukácia Araújo, o cenário é "extremamente difícil e complexo".

"Muitas pesquisas pararam tanto porque são desenvolvidas em laboratório, e as condições sanitárias não permitem que se volte a eles, tanto porque em pesquisas feitas em escolas e hospitais, por exemplo, tudo isso agora está fechado", pontua. Além disso, conforme Nukácia, no caso de mestrados e doutorados, "a prorrogação não é uma coisa tão simples", por isso a Universidade pensa em formas de minimizar esses impactos.

"A gente está, às vezes, revendo ou adiantando aspectos da pesquisa que não dependem de ida a algum lugar. No caso dos laboratórios, em que a pesquisa está parada e vai atrasar, vamos justificar porque os experimentos e os resultados das publicações não puderam acontecer. Não está sendo uma coisa simples", afirma a professora.

Para o diretor científico da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), Luiz Drude, o impacto na área é muito grande. A Funcap é vinculada ao Governo do Estado e financia projetos de 1.702 pesquisadores em 59 unidades cadastradas. "Quem gera ciência no Estado são as universidades, que estão fechadas. O laboratório que trabalho na UFC está há três meses fechado. É claro que isso atrasou muito", analisa.

Tanto a Funcap quanto a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Governo Federal disseram que os bolsistas terão seus incentivos prorrogados por mais três meses, em alusão ao período da pandemia. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) ainda não se manifestou.

Fechado

O laboratório coordenado pelo professor Sandro Jucá, no campus de Maracanaú do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) teve rendimento abaixo do esperado nos últimos três meses. O Laese monitora a geração de energia solar fotovoltaica com projetos em áreas de eletrônica e robótica educacional.

"Com essa pandemia, houve o receio de ficar doente, alguns ficaram preocupados, familiares adoeceram, outros morreram, eles estão emocionalmente abalados. O rendimento foi muito pequeno em termos de pesquisa. Claro que houve algumas publicações, mas o rendimento foi bem aquém do que é feito", explica o professor.

A presença dos alunos na unidade de ensino é substancial, uma vez que as placas solares estão no Campus e, para que a atividade possa ser avaliada, eles precisam instalar sensores, fazer ajustes e organizar circuitos. "Houve uma desconexão - embora involuntária - dos alunos e orientandos, mas ela é muito compreensível e até recomendável. Particularmente, sempre dizia: nosso contato pessoal lá vai haver quando tiver segurança para todos", considera.

Crescimento

Por outro lado, as pesquisas relacionadas à Covid-19 estão a todo vapor. Tanto que todas as agências de fomento criaram editais para projetos específicos que tenham como foco o novo coronavírus. A Funcap, por exemplo, criou uma linha preferencial de apoio a projetos sobre a pandemia e liberou um edital de R$ 2 milhões em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz Ceará.

"Boa parte das pesquisas na área de saúde, tecnologia, psicologia se direcionaram pra problemática da Covid. Houve uma espécie de mutirão da pesquisa para desenvolver algo que ajude a sociedade. Fizemos edital de quase R$ 500 mil com 10 equipes recebendo esse recurso dividido para fazer pesquisa, que vão da área de tecnologia, de previsão de crescimento da doença, biotecnologia", pontua o diretor de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da Universidade de Fortaleza, Vasco Furtado.

Para Nukácia Araújo, pró-reitora da Uece, as atividades voltadas ao combate do coronavírus cresceram em número de pesquisa em razão dos editais que saíram de forma específica. Segundo ela, isso ocorre "em função da urgência que é descobrir uma vacina, um procedimento, algo que se combate". "Numa época como essa, é crucial que as pesquisas aumentem porque é urgente a necessidade que a gente tem de combater esse vírus", afirma.

Para além disso, o diretor de inovação da Funcap, Jorge Soares, acredita que, para superar o momento, a integração foi um dos grandes ganhos da situação atual. "A capacidade de articulação de universidades, pesquisadores, governo e setor produtivo, isso a gente não deve perder. Essa pandemia gerou essa necessidade e isso é importante de ter em mente e guardar, porque é muito precioso que a gente continue com esse potencial e obviamente expandi-lo", encerra.