Alguns chegam pequenos, aos dois, três meses de idade. Outros, já maiores, aos 10 anos ou mais. Uns passam pouco tempo nas unidades de acolhimento. Outros, a infância e a adolescência inteiras, esbarrando em burocracias judiciais que os impedem de integrar uma nova família. Dados do Ministério Público do Ceará (MPCE), compilados até setembro de 2020, mostram que há 853 crianças e adolescentes em unidades de acolhimento no Estado - e somente 102 delas (12%) disponíveis para adoção.
Entre os acolhidos, 260 estão na cidade de Fortaleza e 593 no interior do Ceará, segundo o MPCE. Dos que vivem na Capital, apenas 108 - menos da metade - estão na chamada "janela adotiva", ou seja, têm entre 0 e 7 anos. Este intervalo de idade é o que tem 100% de chances de adoção imediata. O restante (152 pessoas), entre 8 e 18 anos, tem menos de 50% de probabilidade, como calcula o promotor de Justiça e coordenador auxiliar do Centro de Apoio Operacional da Infância, da Juventude e da Educação (Caopije), Dairton Oliveira.
No Ceará, segundo dados coletados nessa segunda-feira (26) no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), 251 crianças e adolescentes estão inseridas no CNA, sendo este o segundo maior número do Nordeste (Pernambuco é líder, com 341 inseridos).
Do total, 123 cearenses estão disponíveis para adoção e outros 128 vinculados a adotantes. A quantidade de pretendentes cadastrados, por outro lado, é bem maior: são 790, atualmente, dos quais 700 estão disponíveis e 90 vinculados. A conta não fecha porque há, entre outros fatores, um grave obstáculo, que embarreira ainda mais os processos e prolonga a permanência de meninos e meninas sem um lar: a não realização de "audiências concentradas", que poderiam tirá-los do chamado "limbo jurídico", quando estão nos abrigos "sem processo em andamento", como explica Dairton Oliveira.
As audiências têm o intuito de verificar se todos os acolhidos possuem Guia de Acolhimento e Processo Judicial, e deveriam ser realizadas pelo Sistema de Justiça das cidades a cada seis meses - mas em Fortaleza, afirma Dairton, "nunca foram feitas".
"Na Capital, onde essas audiências nunca foram feitas, recentemente descobrimos que uma adolescente foi devolvida aos 7 anos de idade, depois de passar apenas um mês com a mãe adotiva, e ficou sem processo para acompanhamento de sua medida. Passados 10 anos, ainda está no abrigo sem ter sido devolvida para a fila de adoção, sem direito a ser novamente adotada", lamenta o promotor.
Em nota, o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) afirmou que "a 3ª Vara da Infância e Juventude da Comarca de Fortaleza não reconhece a informação de que não estariam sendo realizadas audiências concentradas" em seu âmbito, e que, no segundo semestre deste ano, "estão ocorrendo normalmente". Devido à pandemia, complementa a nota, "ficou autorizada a revisão dos casos de crianças e adolescentes acolhidos sem a realização da audiência", providência adotada no primeiro semestre, ápice da crise sanitária.
Ainda segundo o TJCE, "a 3ª Vara da Infância e Juventude possui um dos maiores índices de julgamento e uma das menores taxas de congestionamento de toda a comarca. O Índice de Atendimento a Demanda é de 143,52%. Isso significa que julgamos o equivalente a 100% dos processos distribuídos no corrente ano e ainda reduzimos o estoque processual", conclui a nota.
Neste ano, o mês de maio, cujo dia 25 é o Dia Nacional da Adoção, teve um pico de 27 processos de adoção concluídos, quase metade de todos os 58 registrados entre janeiro e setembro de 2020, de acordo com dados do MPCE. No mesmo período do ano passado, foram 72 adoções concluídas - 14 a mais que neste ano pandêmico.
Proteção
O Ceará tem, hoje, nove entidades de acolhimento para crianças e adolescentes geridas direta ou conjuntamente pela Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS). Destas, sete são em Fortaleza e duas são regionalizadas, localizadas nos municípios de Itaitinga, na Região Metropolitana, e Jaguaruana, no Vale do Jaguaribe. De acordo com a SPS, são 182 meninos e meninas institucionalizados nelas. Além dessas instituições, há outras não-governamentais. Só na Capital, entre estas e as mistas, são 20 unidades, conforme a Defensoria Pública do Estado.
Outra preocupação, além da situação quase crônica dos acolhidos, tem sido em relação às medidas sanitárias para barrar a Covid-19. Segundo estima Ana Cristina Barreto, defensora titular do Núcleo de Atendimento da Defensoria Pública da Infância e Juventude (Nadij), "desde o início da pandemia, a preocupação é com os meninos, porque os funcionários têm fluxo de entrada e saída dos abrigos. Alguns chegaram a testar positivo para a Covid". A Defensoria é um dos órgãos responsáveis por realizar visitas fiscalizatórias nas entidades, processo que foi "virtualizado" durante a pandemia.
A SPS garante que "foram aplicadas ainda em março, com a elaboração de um plano de contingência que determinou, de imediato, o isolamento social e o reforço no uso de Equipamentos de Proteção Individual e das medidas de higienização, além de um protocolo de ação caso fosse registrada incidência da doença entre funcionários ou acolhidos".
A Pasta confirmou que acolhidos e funcionários foram infectados, mas não confirmou a quantidade, nem o número de testes feitos. No período de pico da pandemia, entre abril e junho, as visitas e contatos com pretendentes à adoção foram restritas, sendo mantidas apenas on-line.
"Adoções que já estavam em fase mais adiantada não foram prejudicadas, assim como de bebês, que não precisam de estágio de convivência. Agora, excepcionalmente, foi autorizado que os adotandos realizem esse estágio de adaptação na casa dos pretendentes, para minimizar qualquer risco", explica a titular do Nadij.
Educação
Porém, reduzir o contato de meninos e meninas institucionalizados com o mundo externo é, ao mesmo tempo, cuidado e prejuízo - principalmente no que se refere à educação, como destaca Ana Cristina. "Em algumas unidades, as próprias equipes técnicas têm pedagogos. Mas não em todas. Em outras, os voluntários que davam reforço escolar deixaram de ir, durante a fase mais crítica da pandemia. Na própria Prefeitura de Fortaleza, existe uma lei que assegura o reforço escolar, mas há uma dificuldade de obter vaga. Ajuizamos uma Ação Civil Pública para que o Ministério Público garanta".
Conforme dados do MPCE, das 260 crianças e adolescentes que vivem, hoje, em unidades de acolhimento da Capital, 192 (74%) estão em idade escolar: 25 têm 4 e 5 anos, idade de pré-escola; 114 estão entre 6 e 14 anos, idade de ensino fundamental; e os outros 53 têm entre 15 e 17 anos, devendo estar matriculados no ensino médio. Segundo a SPS, "todos os acolhidos permaneceram em atividades escolares de forma remota, já que as unidades de acolhimento ofertam acesso a equipamentos de informática".
Mas, lamenta a defensora pública Ana Cristina Barreto, os dispositivos eletrônicos são insuficientes, fator que pode ter sido catalisador de um déficit já existente. "Há uma dificuldade muito grande de aprendizado entre eles, de educar na idade certa. Isso dificulta, inclusive, a colocação deles no mercado de trabalho, a obtenção de bolsas de estágio. Conseguimos parceria com um centro de estágio, mas foi difícil encontrar alunos que estivessem no ensino médio e atendessem à faixa etária exigida".