77% das mulheres do Ceará são principais responsáveis por atividades domésticas na pandemia

Tema é abordado em pesquisa realizada pelo Instituto Opnus, a pedido do Sistema Verdes Mares, entre os dias 27 e 30 de março de 2021

Escrito por Lígia Costa , ligia.costa@svm.com.br
Mulher realizando trabalho doméstico
Legenda: Além de terem que se responsabilizar pelos afazeres domésticos, mulheres também relatam maior carga de atividades no lar durante a pandemia
Foto: Viviane Pinheiro/Arquivo DN

As tarefas domésticas recaíram com intensidade ainda maior sobre as mulheres durante a pandemia de Covid-19. No Ceará, 77% das mulheres declararam ser as principais responsáveis pela realização de atividades em casa como limpar e cozinhar.  

O dado faz parte de uma pesquisa encomendada pelo Sistema Verdes Mares e realizada pelo Instituto Opnus entre os dias 27 e 30 de março, com 1.380 pessoas com mais de 18 anos que possuíam celular. A margem de erro máxima do estudo é de 2,6 pontos percentuais. 

Dentre todos os entrevistados, 52% são mulheres e 54% têm renda familiar mensal de até um salário mínimo. As faixas etárias das pessoas mais consultadas na pesquisa são de 25 a 34 anos (24%) e de 45 a 59 anos (21%).  

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Das entrevistadas, aquelas que mais se veem (93%) como as principais responsáveis pelas atividades domésticas estão na faixa etária de 45 a 59 anos. Tal percepção é mais branda (54%) somente entre as jovens da faixa de 16 a 24 anos.  

A maioria das mulheres que se consideram mais sobrecarregadas em casa são autônomas residentes em Fortaleza e no Interior do Estado, com renda familiar de até um salário mínimo e nível de escolaridade Fundamental.    

Isolamento eleva peso da obrigação  

Além da obrigação de tomar a frente nos afazeres domésticos, 54% das mulheres participantes do estudo também relataram maior sobrecarga dessas atividades durante a pandemia. 

De acordo com o diretor do Instituto Opnus, Pedro Barbosa, o aumento da carga de trabalho sobre os ombros das mulheres pode ser justificado pelo próprio contexto da pandemia.  

Devido à necessidade de isolamento social, que desencadeou no desemprego crescente e na adoção do home office e das aulas remotas, os integrantes da família tendem a ficar por mais tempo em casa.  

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Logo, é comum que as mulheres se coloquem à frente ou sejam mais responsabilizadas a desempenhar atividades domésticas, que incluem cuidar da alimentação da família até ajudar os filhos a cumprir com suas obrigações escolares. 

"E ainda tem aquela [mulher] que enfrenta jornada dupla. Ela trabalha fora e depois ainda volta para cuidar da casa”, soma Pedro. 

A própria pesquisa confirma. Do público feminino entrevistado pelo Instituto Opnus, 61% dizem que, desde o início da pandemia, passam mais tempo com a família.

Considerando todos os entrevistados sobre esse assunto - incluindo os homens - 59% declarou passar mais tempo com os demais integrantes da família dentro de casa. A maioria dessas pessoas são desempregadas (71%), na faixa etária de 35 a 44 anos (69%), com renda familiar de até um salário mínimo (60%) e residentes na Região Metropolitana de Fortaleza (63%). 

Trabalho redobrado

Moradora do Bairro Damas, em Fortaleza, a autônoma Zuleide Souza de Lima, de 56 anos, se desdobra para enfrentar jornada dupla de trabalho, dentro e fora de casa. Assim como as mulheres consultadas pelo instituto de pesquisa, ela sente que a carga de trabalho doméstico foi elevada pela pandemia.

Legenda: Autônoma, Zuleide Souza de Lima se desdobra para trabalhar e cuidar da casa
Foto: Arquivo pessoal

Além de trabalhar fora, acorda cedo para preparar refeições para as duas filhas, ambas de 16 anos, que agora permanecem em casa, em tempo integral. As gêmeas se tornaram pré-vestibulandas este ano e a mãe incentiva que o tempo das duas seja dedicado aos estudos e às aulas remotas. 

"Antes, as meninas passavam o dia no colégio, e eu saía de manhã e só voltava à noite. Agora, é bem mais complicado porque tenho que também vir [em casa] fazer almoço e depois voltar ao trabalho. É bem puxado, mas eu não posso cobrar muito delas [filhas] porque já estudam demais", diz, enumerando ainda os gastos extras e o tempo perdido com os novos deslocamentos. 

Mesmo quando vivia com o marido, Zuleide concentrava as atividades domésticas. "Eu sempre tive uma responsabilidade de casa muito grande, com criança, trabalhando fora. Sempre era mais eu mesma".  

Impacto à saúde mental

Em meio a tantas responsabilidades, também são mais frequentes os relatos de mulheres que afirmam ter tido algum sintoma ligado à saúde mental na pandemia. No estudo do Instituto Opnus, 62% das entrevistadas indicaram já ter sentido sintomas de ansiedade, medo, insônia, estresse e/ou pânico.

A carga de estresse foi mais forte sobre as mulheres do que talvez em outros segmentos da população. E, com certeza, isso repercute nas mulheres terem afirmado sentir sintomas de saúde mental”
Pedro Barbosa
Diretor do Instituto Opnus

Por ter que limpar e prover a casa, cuidando da segurança, saúde, educação e alimentação das filhas diariamente, a autônoma Zuleide Souza também se percebe mais estressada, desde que a pandemia começou. Apesar do esforço, não tem conseguido reagir de outra maneira. 

"A gente pegou coronavírus e agora está fazendo um ano. Daí pra cá, foi bem complicado porque eu fiquei com um problema de audição muito forte, um pouco agitada e tem dias que, do nada, eu fico muito nervosa. É tanta coisa, correria, preocupação que você acaba se estressando mesmo que não queira".   

Desigualdade histórica

Coordenadora do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética (LabVida) da Instituição, Paula Brandão observa que a pandemia veio expor uma histórica desigualdade de gênero que, ao contrário do que se poderia imaginar, nunca foi corrigida. O problema perdura, amparado em uma estrutura social machista.

Na avaliação da professora, por mais que as mulheres acumulem conquistas, provenientes da Revolução Sexual ou do Movimento Feminista, jamais houve um "acerto de contas" entre os papéis masculinos e femininos.

A gente tem lutado por melhores condições, mas percebemos que é como se as mulheres tivessem dado passos para trás agora, na pandemia"
Paula Brandão
Pesquisadora do LabVida

Para a pesquisadora, a questão histórica explica porque mulheres, sobretudo aquelas com menor escolaridade, estão sobrecarregadas, vendo a produtividade no trabalho reduzir.

O cenário é ainda mais desolador para aquelas que são autônomas e, tal como Zuleide, precisam sair de casa, se tornando mais vulneráveis à contaminação pelo coronavírus.

"Esse estresse causa uma sobrecarga ainda maior sobre essas mulheres que ganham até um salário mínimo. A dimensão do sofrimento psíquico para essas mulheres vai além".

Paula cita ainda que, mesmo quando a mulher conseguiu ocupar o seu lugar na universidade, foi limitada a escolher cursos que a mantinha na função de cuidadora. Seja como assistente social, professora ou enfermeira, por exemplo. 

"A condição da mulher de estar sempre nessa função do cuidado se manifestou claramente nesse período de pandemia. Por mais braços que estivessem dentro das casas, isso não foi contabilizado como divisão do trabalho para as mulheres. Pelo contrário, os braços aumentaram e o trabalho também". 

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