100 anos da descoberta da insulina: entenda a importância da medicação no tratamento da diabetes
Ao longo das últimas décadas, uso do hormônio passou por evoluções que elevaram o bem-estar e a expectativa de vida de pacientes diabéticos
O ano de 2021 marca o centenário de uma descoberta vital para a humanidade: a insulina, hormônio produzido pelo pâncreas, cujo papel fundamental é controlar o metabolismo dos carboidratos no corpo humano.
A diabetes mellitus, ou apenas diabetes, é uma doença crônica caracterizada pelo alto nível de glicose (açúcar) no sangue (hiperglicemia). E essa elevação ocorre, justamente, devido à incapacidade do pâncreas de produzir insulina ou de até produzi-la, mas em quantidade insuficiente.
Sem a existência do hormônio insulina, as células não conseguem absorver a glicose e transformá-la em energia para abastecer todo o corpo. E é essa energia que permite ao ser humano andar, falar, pensar, enfim, sobreviver.
"De forma bem objetiva, a insulina 'abre a porta' da célula para a glicose entrar e essa glicose, dentro da célula, vai se transformar em energia nos processos metabólicos do corpo. Como não tem essa glicose dentro da célula, o corpo entende que não tem energia”, esclarece a educadora em diabetes e docente do curso de Enfermagem da Universidade Estadual do Ceará (Uece), enfermeira Shérida Paz.
Sintomas de descontrole
Para compensar a suposta falta de energia, de nutrientes, surgem sintomas como a polifagia, que é a vontade excessiva de comer. Contraditoriamente, o descontrole do nível de açúcar na corrente sanguínea também pode levar à perda de peso.
Se o corpo “não está conseguindo usar a glicose como fonte energética, ele vai buscar outras formas de energia. E encontra no músculo e na gordura. Por isso, pessoas perdem peso”, diz a professora.
Além da fome excessiva e da perda de peso, há outros dois sintomas básicos da hiperglicemia. Um deles é a poliúria, a eliminação excessiva de urina. Se trata, na verdade, de uma tentativa ‘desesperada’ do organismo em jogar para fora o excesso de glicose no sangue. O outro sintoma é a polidipsia, a sede excessiva gerada para compensar a grande perda de líquido pela urina.
Os sintomas acima mencionados, cabe ressaltar, ocorrem apenas em casos de descontrole glicêmico. Portanto, antes da descoberta da insulina, era impossível alcançar tal equilíbrio, pois não existia a possibilidade de injetar o hormônio no organismo.
“A não produção de insulina leva a um estado de desidratação e desnutrição. Geralmente, nesses 100 anos atrás, as pessoas morriam em decorrência da falta [de insulina]. Então, essa descoberta deu uma possibilidade de vida a essas pessoas”, frisa a médica endocrinologista Rafaela Vieira Correa, integrante do Coletivo Rebento/Médicos em Defesa da Vida, da Ciência e do SUS.
“Muitas vezes, o tratamento era ficar sem comer, era a inanição porque [as pessoas] percebiam que tinha ligação entre a alimentação e os sintomas de hiperglicemia, mas não sabiam exatamente por quê. Com a descoberta da insulina, foi possível proporcionar um tratamento em que as pessoas pudessem continuar comendo, mesmo após o diagnóstico de diabetes. A insulina proporcionou vida”, corrobora Shérida Paz.
A longo prazo, o descontrole do diabetes pode provocar várias complicações de saúde. De acordo com a médica endocrinologista, Ana Flávia Torquato, complicações macrovasculares, como Infarto agudo do miocárdio (IAM) e Acidente Vascular Cerebral (AVC), estão entre as causas mais comuns de mortes na população com diabetes.
Também há complicações microvasculares, como insuficiência renal, levando à necessidade de hemodiálise ou transplante renal, bem como retinopatia diabética, que pode levar à perda visual. E há a neuropatia diabética, que pode levar a complicações, necessitando a amputação de membros”
Tipos de diabetes
A hiperglicemia pode acometer pacientes diagnosticados com o diabetes tipo 1 ou diabetes tipo 2. No tipo 1, o diagnóstico ocorre, normalmente, nos primeiros anos de vida até a adolescência, tornando esses pacientes dependentes de insulina pela vida inteira.
Já o segundo, costuma surgir na quarta ou quinta década de vida. Geralmente, pacientes do tipo 2 apresentam obesidade, sedentarismo, pressão e colesterol altos, com risco cardiovascular, diferencia Rafaela.
“No diabetes tipo 2, a pessoa produz a insulina, só que essa insulina não age adequadamente. É o que a gente chama de resistência à insulina. É uma disfunção do pâncreas que produz insulina, mas a ação dessa insulina é impedida”.
Veja também
Embora seja possível controlar a disfunção com medicamentos, ao longo do tempo, a doença pode progredir e o paciente tipo 2 – assim como o do tipo 1 – pode parar de produzir insulina, precisando injetá-la.
Ana Flávia Torquato confirma que cerca de 90% das pessoas com diabetes tipo 2 têm sobrepeso ou obesidade. Mas a descoberta da doença não torna, automaticamente, a dependência pela medicação uma sentença para o resto da vida.
“A perda de peso no início da doença, logo após o diagnóstico, pode sim normalizar os índices glicêmicos. Dependendo da quantidade de peso perdido, [pode haver] remissão do diabetes, sem a necessidade de tratamentos através de medicações”.
Além do diabetes tipo 1 e tipo 2, há também o diabetes gestacional, caracterizado pelo aumento dos níveis de glicose no sangue durante a gravidez. Devido ao ‘turbilhão’ de hormônios produzidos nesse período, ocorre a hiperglicemia e o pâncreas necessita produzir uma quantidade maior de insulina.
Por isso, algumas mulheres necessitam injetar o hormônio ainda no período da gestação, afirma Rafaela Vieira, que também faz um alerta. “Se você teve diabetes gestacional, significa que tem que cuidar da sua saúde. Geralmente, as diabéticas gestacionais são pacientes que lá pros 40, 50 anos vão desenvolver o diabetes tipo 2”.
Conforme a médica, o cuidado do diabetes consiste em um “tripé”, que envolve não apenas o uso correto e frequente da medicação, como também o controle da alimentação, aliados à prática de exercícios físicos. O cuidado com o sono e a saúde mental, acrescenta a enfermeira Shérida Paz, também influenciam diretamente na glicemia.
Níveis da doença
O valor normal da glicemia em jejum é inferior a 99 mg/d. Se variar entre 100 mg/dL e 125 mg/dL, há uma variação já considerada como pré-diabetes. Quando igual ou superior a 126 mg/dL, ocorre o diagnóstico de diabetes. Caso esse valor seja igual ou inferior a 70 mg/dL, se tem a hipoglicemia. Isso significa que há pouco açúcar no sangue e a energia necessária para o corpo está baixa.
Nos casos mais graves de hiperglicemia, descreve a médica Rafaela Vieira, “os pacientes entram em cetose, cetoacidose ou coma hiperosmolar. Eles vão desidratar, desidratar, tem uma hora que vão desmaiar, apagar. Então, esses pacientes serão levados pra emergência desidratados e com a glicose muito alta".
Foi isso o que aconteceu com a assessora de compras e influencer Lidiane Silva, de 36 anos. Aos 15, passou mal e foi levada às pressas ao hospital, onde ficou internada por 24 horas em um leito de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
“Eu acordei com muita falta de ar, apaguei e fui pra UTI. A glicose estava em 700 [mg/dL], muito alta e, desde quando eu descobri, já fui pra insulina”, rememora Lidiane.
Após uma semana de internação, se viu obrigada a incluir a insulina no dia a dia e a conviver com a ideia de ter diabetes tipo 1. Inicialmente confundidos como sinais de anemia, vários sintomas surgiram rapidamente, ao longo de três meses.
“Eu comecei a emagrecer, sentir muita sede, [fazer] muito xixi, comia muito e, quanto mais eu comia, mais eu emagrecia. E o corpo cansado, com formigamento e dor de cabeça".
Adolescente à época, a influencer precisou de um tempo para se adaptar às mudanças para uma melhor qualidade de vida. Além de usar a insulina, passou a controlar a alimentação e a fazer exercícios físicos.
“A diabetes não é só não poder comer açúcar, é um controle de tudo. Você tem que estar bem emocionalmente, ou pelo menos tentar, se alimentar bem, fazer exercício físico. É um conjunto; nada anda sozinho na diabetes”, compartilha.
No início, Lidiane utilizava insulina em frascos e chegava a ter hipoglicemia. “Eu não sentia nada e quando ela [diabetes] me pegava, já era de repente. Eu passava mal, tinha convulsão, desmaiava. Às vezes, a dosagem [de insulina] estava um pouco a mais pra quantidade que eu tinha comido”.
Hoje, com a insulina que está usando, em canetas descartáveis mais modernas, o efeito é “totalmente diferente”.
“Com a insulina que eu tomo, sinto que está baixando [a glicemia], sinto uma fome, fraqueza, formigamento, uma tontura. Quando a gente é diabético há muito tempo, sente uma coisa estranha e quando faz o exame, está realmente baixa. Eu não passo mais mal como eu passava. Sinto os sintomas, e dá tempo comer”.
Já entendendo o diabetes como uma doença grave, a assessora de compras tem conseguido conviver bem com ela. “Tenho que fazer exame seis vezes ao dia, então é uma vigilância eterna. Mas é uma doença que você pode conviver, tratando”.
Evolução da insulina
A caneta de insulina descartável utilizada por Lidiane é mais prática de manusear e permite o uso de agulhas mais curtas e finas do que as tradicionais injeções. Este é um exemplo de como a produção da insulina em laboratório (exógena) e sua aplicação vêm evoluindo nestes últimos 100 anos.
Segundo a médica Rafaela Vieira, logo que foi descoberta, a insulina usada por humanos era proveniente de pâncreas de bois e de porcos. O que acabava provocando alergia, exigindo uma imunogenicidade maior.
“Só que, atualmente, a gente já desenvolveu tecnologia e a insulina que a gente usa é de DNA recomendante humana. Hoje em dia, o uso da insulina é mais seguro, temos insulinas mais modernas e o cuidado do paciente diabético avançou muito nesses últimos anos”.
Outro avanço, elenca a médica endocrinologista, foi a bomba de insulina, que funciona como um pâncreas artificial. “É um aparelho muito pequenininho que acopla na barriga e ele fica dando doses de insulina durante o dia todo àquela pessoa”. Esse é um tipo de tratamento moderno, mas ainda caro e que demanda treinamento.
“Evoluímos também nos transplantes de ilhotas, que são as células que produzem insulina. Alguns pacientes fazem esse transplante e a gente consegue resgatar essa função do pâncreas. Não estamos fazendo [no Brasil], infelizmente, mas existe em nível de pesquisa e em países mais avançados”.
Para a médica Ana Flávia, desde 1921, ocorreram "avanços muito importantes" em relação à administração e mecanismo de ação da insulina, bem como na monitorização da glicemia. "E a expectativa é que tudo isso continue avançando".
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza gratuitamente as insulinas humanas do tipo NPH e Regular para todos os indivíduos portadores de diabetes.