Alunos de escolas públicas enfrentam obstáculos no acesso remoto

Com atividades presenciais suspensas por mais 30 dias, a Secretaria da Educação orientou que aulas remotas podem ser realizadas. A possibilidade esbarra na falta de acesso à internet e de computadores na casa dos estudantes

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Legenda: Conforme dados do Spaece de 2018, um a cada quatro estudantes da rede pública não tinha acesso à internet
Foto: Foto: Gustavo Pellizzon

Com a prorrogação da suspensão das aulas em instituições de ensino do Ceará pelo mês de abril, como forma de enfrentamento à disseminação do coronavírus, a continuidade do aprendizado deu margem a questionamentos. A Secretaria da Educação do Estado (Seduc) propôs que as escolas realizem o ensino remoto ou não-presencial. Contudo, a modalidade traz consigo obstáculos de acessibilidade, em especial para estudantes das rede pública.

Wi-fi compartilhado, pouco espaço em casa e ausência de computadores são algumas das variáveis com as quais os alunos de escola pública de Fortaleza têm de lidar para ter acesso ao ensino à distância. De acordo com dados mais atuais do Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará (Spaece), em 2018, um a cada quatro estudantes da rede pública não tinham acesso à internet.

No sistema, foram compiladas as respostas de 386.025 estudantes, do 2º, 5º e 9º anos do Ensino Fundamental, 3ª série do Ensino Médio e EJA Ensino Médio, de instituições das redes municipal e estadual. Conforme o Spaece, 65,8% dos estudantes não tinham nenhum acesso a computador em casa, enquanto 29,5% dispunham de um.

Pegar emprestado o computador do tio foi a forma que o estudante Ailton Costa, 17, do 2º ano do Ensino Médio da EEEP Professor Joaquim Antônio Albano, encontrou para continuar realizando as tarefas escolares em casa. O adolescente tem recebido orientações dos professores via redes sociais ou por e-mail compartilhado com toda a turma. Os alunos que não conseguem ter acesso aos conteúdos são ajudados por colegas de classe, que enviam as atividades por outros canais.

"Meus vizinhos também vêm aqui em casa para enviar atividade, bater foto, usar o computador", relata Ailton. O estudante afirma que está conseguindo se adaptar ao novo sistema, embora sinta falta das aulas presenciais.

Acesso limitado

De acordo com Adriana Gerônimo, moradora do bairro Lagamar e membro do Conselho Gestor de Zeis, o ensino a distância foi "forçado" pela crise epidemiológica, e alguns alunos podem ser prejudicados pela falta de preparação prévia. "O que a periferia acessa em massa está limitado ao Whatsapp, Facebook, Instagram. E não são todos os alunos que têm acesso ao celular, pela questão da situação de vida mesmo", explica. Segundo ela, é comum que as famílias próximas compartilhem o mesmo roteador de Wi-fi, o que prejudica a qualidade da conexão.

Além das dificuldades de acesso a internet dos alunos, um obstáculo relatado pelo professor Joaquim Araújo, membro do Fórum das Escolas Estaduais do Grande Bom Jardim, é o despreparo profissional. Muitos não têm conhecimento sobre as ferramentas que podem ser utilizadas para uma educação a distância.

No entanto, os professores têm se empenhado, de acordo com ele, para não só repassar conteúdo, mas também ouvir de forma sensível como os alunos estão lidando com a quarentena. Perguntas sobre alimentação, relação com a família e conforto em casa são trocadas com as turmas. "Seja um conteúdo mais técnico ou mais humano, a quem chega, chega bem. Há um retorno positivo. A preocupação é com quem não chega", expõe Joaquim. Já existem relatos, segundo ele, de estudantes em situação de fome por não terem alimentação dada pela escola. As famílias, muitas vezes dependentes de trabalhos informais, não conseguem se manter em quarentena e saem para buscar trabalho.

No Lagamar, Adriana relata situação parecida. "As famílias não pararam por conta do coronavírus. Tem muitos desafios para esse ensino à distância, não sei como o poder público vai utilizar da criatividade, mas é preciso pensar no público da periferia", insta.

Conectividade

De acordo com a professora Andréia Turolo, da Universidade Federal do Ceará (UFC), especialista em aprendizado mediado por tecnologia, a conectividade é o principal obstáculo nesse processo. "A maioria tem Internet só no celular, e isso não é suficiente para fazer um trabalho à distância. A metodologia de ensino de uma sala de aula é totalmente diferente do ensino à distância, então não só o aluno não é preparado pra isso, mas o professor também não é preparado", pondera.

A preparação de materiais destinados ao ensino remoto também requer atenção, em especial na Educação Básica, que, segundo Andréia, é muito abrangente. Para tal, seria necessário um processo demorado a fim de oferecer bons resultados. "A cultura escolar é de sala de aula, então passa por crenças, confiança, por modo de aprender, mesmo", detalha a professora.

Apesar de seus inúmeros recursos, a Internet também se torna ineficiente nesse caso devido à falta de acesso a banda larga, notebooks ou computadores de mesa em muitos lares. Assim, uma parcela dos estudantes seria excluída do processo de aprendizado remoto. "A melhor alternativa para não comprometer o ensino público é cancelar as aulas e fazer reposição depois", afirma.

Emergencial

"Nós entendemos que esse momento gravíssimo atinge diretamente a educação. Particularmente na rede estadual, nós vemos que a interatividade virtual para acompanhamento de atividades domiciliares é um passo importante para diminuir os prejuízos pedagógicos, porque podemos manter todo o sistema articulado, interagindo e cumprindo parte do processo de ensino e aprendizagem", avalia Anizio de Melo, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Educação (Apeoc).

Para ele, o Ceará demonstra um avanço ao não paralisar totalmente a relação educacional. "Há ainda situações pontuais que devem ser corrigidas, mas esse início de experiência de virtualização do processo de aprendizado tem sido muito bem recebido. Muitos de nós professores já temos experiência em escolas nesse uso da tecnologia para melhor aprendizagem", diz.

Anízio Melo espera que, ao fim do período de isolamento e suspensão das aulas, os instrumentos de ensino à distância possam ser mais qualificados para garantir que as aulas presenciais tenham componentes virtuais e sejam potencializadas. No entanto "esse trabalho é uma medida emergencial, mas a atividade pedagógica presencial é insubstituível", avalia o professor.

A presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), no Ceará, Luíza Aurélia, informou que está finalizando uma pesquisa para avaliar a estrutura de conectividade dos municípios e qual o percentual de alunos que o ensino remoto consegue atingir.

Conforme Luíza Aurélia, a orientação da Undime para os municípios é de suspensão de aulas sem atividades não presenciais, além da não antecipação das férias escolares. "Não descartamos de todo a possibilidade de aulas não presenciais. Estamos nos sentindo amparados pelo governador e pela Secretaria da Educação, mas a grande questão dos municípios desse momento é por conta da problema de conectividade", avalia a presidente da Undime-CE.

Diretrizes

As atividades presenciais em escolas, cursos e universidades da rede pública e particular continuarão suspensas por mais 30 dias, decisão publicada no Diário Oficial do Estado na segunda-feira (30). Conforme as diretrizes publicadas, no sábado (28), pela Seduc e Apeoc, a reposição da carga horária acontecerá por meio de atividades realizadas pelos estudantes em casa.

Conforme a Seduc, o livro didático é apontado como principal ferramenta para as aulas remotas, e os professores devem utilizar estratégias de ensino e acompanhamento do aprendizado à distância, podendo utilizar o suporte de tecnologias ou não. A Secretaria garantiu apoio "para o uso de aparatos tecnológicos a fim de facilitar a conexão neste período de ensino domiciliar". "Entre as plataformas disponíveis estão o Aluno Online, Professor Online e o Google Classroom", cita.

Já a avaliação dos conteúdos ministrados remotamente poderá acontecer de duas maneiras: quando os estudantes retornarem às escolas, ou utilizando recursos dos ambientes virtuais de interação "quando for possível".

Questionada sobre qual procedimento seria adotado para estudantes que não têm acesso à Internet ou a computadores, e se destes também seria cobrado o conhecimento de conteúdos ensinados à distância, a Seduc acrescentou, por nota, que as diretrizes estabelecem que "as avaliações dos conteúdos ministrados durante o período de suspensão das aulas presenciais devem levar em conta as especificidades de cada escola".

O Ministério Público de Ceará (MPCE), por sua vez, informou que uma reunião será realizada hoje para planejar a execução do ensino à distância no Estado, com base nas desafios provocados pela diferença de conectividade em cada município.

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