Por trás de um grande júri: como o Poder Público se preparou para o maior julgamento no Ceará
O Diário do Nordeste traz a série de reportagens ‘Por trás de um grande júri’, com bastidores da atuação das autoridades desde o dia seguinte à ‘Chacina do Curió’
A quantas mãos ‘é feito’ um grande julgamento? Quando as primeiras datas dos ‘júris do Curió’ foram anunciadas, a expectativa pelo momento já previsto para ser um grande marco na história do Judiciário cearense ia além da sentença.
Um colegiado de juízes, cinco promotores, 4 defensores públicos, 21 jurados e mais de 25 advogados na defesa. No total, 214 horas de julgamento, com seis policiais militares condenados a quase 1.325 anos de prisão, em processos que já ultrapassam as 30 mil páginas.
Antes dos 20 dias de júri no Fórum Clóvis Beviláqua, em Fortaleza, Ministério Público do Ceará e Defensoria Pública do Ceará firmaram uma parceria: atuariam juntos, em conjunto, na acusação do maior julgamento do Estado. A ideia era: dar voz a cada uma das vítimas da Chacina da Messejana, à periferia que nunca mais foi a mesma, desde o massacre em 2015.
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“Foi uma situação inédita, nunca vi um júri naquelas proporções. De um impacto, de um volume, uma duração nesses parâmetros e um impacto social e político gigantesco. O Curió hoje é mais do que o Curió, é a periferia, é como a Segurança Pública age dentro das comunidades”, diz a defensora pública Gina Moura.
“NÃO É UM PROCESSO COMUM”
O promotor de Justiça, Luís Bezerra, esteve em dois dos três julgamentos. Para estar a postos no plenário e à frente logo no primeiro debate, passou a estudar o ‘processo do Curió’ meses antes.
Luís conta que o procurador-geral de Justiça, Manuel Pinheiro, instituiu uma comissão formada por cinco promotores, ainda em março de 2023, para que se voltasse à preparação para o momento.
“O promotor natural, o titular dessa promotoria e que, portanto, tinha responsabilidade de atuar nesse processo solicitou ajuda, principalmente pela dimensão e peculiaridades deste processo, que não é um processo comum, foge da prática da nossa realizada pela complexidade, excessivo número de réus e páginas. Fomos ler de capa a capa, milhares de páginas, horas de mídias, perícias. A comissão viu a necessidade, a medida que o estudo ia fluindo, se reunir com periodicidade, semanalmente e assim foi até a véspera do julgamento”, detalha Luís Bezerra.
Quem atendia as mulheres, mães e esposa dos mortos e sobreviventes, desde dias após o caso, também precisava estar na acusação. A coordenadora da Rede Acolhe, Gina Moura, acrescenta que a Defensoria tinha “um papel muito claro nesse júri: dar identidade”.
“A Rede Acolhe surge a partir do ‘Caso Curió’. A gente chega com uma perspectiva de dar voz às vítimas e tirá-las dessa instrumentalização. Esse caso é “rico” na medida a qual a gente não sobrepôs funções, mas sim tivemos uma grande mobilização. Existe um entendimento público que a gente precisa esclarecer: a atuação da Defensoria Pública é a de permitir acesso à Justiça”.
Nos bastidores, “os promotores comentavam que era preciso dividir a atuação, já que se tratava de um crime enigmático e colossal”, segundo Luís Bezerra.
‘A GENTE LUTOU JUNTO NA BUSCA POR JUSTIÇA’
A chegada ao júri teve interferência direta do coletivo ‘Mães do Curió’. Passados quase oito anos do caso, a união e atuação das famílias dos mortos e sobreviventes também tem papel de protagonista no ‘buscar Justiça’.
Edna Carla Souza Cavalcante, mãe do jovem Álef Souza, não esquece um só dia do filho e nem mesmo deixar que outros esqueçam o que aconteceu com ele e com os demais assassinados a tiros na periferia de Fortaleza.
“A gente sempre lutou com o Ministério Público na busca por Justiça, sempre firme. Como mãe de uma vítima fatal, precisei que eles entendessem que eu não cobrava porque era chata, mas porque a gente precisava de uma atuação firme e forte para que isso nunca mais acontecesse, para salvar outros jovens”, disse Edna.
O coletivo ‘Mães do Curió’ ainda reconhece a importância da Rede Acolhe e do Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência (NUAVV) neste enfrentamento: “chegaram junto mesmo, sempre nos protegendo”
Passados os três primeiros julgamentos e ainda sem data para que os demais PMs acusados sentem no banco dos réus, Edna considera que “o feito até aqui é histórico, mas que dói ver alguns acusados absolvidos”.
“Me dói ver que alguns passaram ilesos nesse julgamento e a gente entende que MP e Defensoria não faltaram com as provas. Eles tiveram argumentos fortes, mas foi uma decisão dos jurados. Nós acreditamos que pelo menos a impunidade diminuiu. A nossa luta, que é por Justiça, pelos nossos que morreram, continua”, conforme Edna Carla.