Luta de carpinteiros navais faz de Icapuí um dos últimos redutos da fabricação artesanal de barcos

Segundo a Secretaria de Finanças de Icapuí, atualmente são 15 carpinteiros navais em exercício, número que chegou a ser quase sete vezes maior no fim dos anos 1990.

Escrito por André Costa , andre.costa@svm.com.br
Legenda: Icapuí, no litoral cearense, se destaca pela produção de barcos e pelo volume de pesca
Foto: Kid Jr.

A pequena cidade litorânea de Icapuí, no Ceará, conta com pouco mais de 20 mil habitantes, conforme último censo (2020) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Município, cuja economia gira em torno da pesca, é um dos últimos redutos da fabricação artesanal de barcos e jangadas no Ceará. Segundo a Secretaria de Finanças de Icapuí, atualmente são 15 carpinteiros navais em exercício, número que chegou a ser quase sete vezes maior no fim dos anos 1990. 

A Secretaria não possui levantamento específico de quanto o setor movimenta por ano, no entanto, a titular da Pasta, Carmem Júlia, pontua que, "a pesca, de modo geral, movimentou no ano passado  R$ 72 milhões de reais". Ela acrescenta que "60%  da população sobrevive da pesca, o que envolve produção de barco, comercialização de lagosta, aquicultura e outros".

Carpinteiros de barcos

O cenário paradisíaco de Icapuí divide espaço com os inúmeros barcos que ocupam não somente o mar, mas também os estaleiros e quintais das casas. Quem anda por entre as ruas estreitas da pacata cidade logo percebe que a fabricação de barcos é uma das atividades marcantes do Município.   

Legenda: Seu Evilásio, hoje com 78 anos, foi um dos pioneiros na construção artesanal de jangadas em Icapuí
Foto: Kid Jr.

Seu Evilásio, hoje com 78 anos, foi um dos pioneiros na construção artesanal de jangadas no Município. Há pouco mais de cinco décadas ele construiu, ao lado de seu irmão, um dos primeiros barcos de Icapuí. De lá para cá, a atividade se multiplicou e os estaleiros – locais onde os barcos são construídos – passaram a compor o cenário local.  

“Quando comecei não tinha nenhum estaleiro aqui. Na verdade, nem a gente sabia fazer barcos. Fomos aprendendo na prática, sem ninguém nos ensinar. Mas logo de cara deu certo. Os primeiros não saíram bonitos, mas não afundaram, é o que importa”, brinca Evilasio Matias da Silva.  
 

O carpinteiro naval, aposentado há sete anos, rememora que ao passo em que os barcos iam sendo fabricados, novas encomendas chegavam e, assim, “as pessoas perceberam que havia demanda. Então outros [profissionais] foram surgindo e atividade passou a ganhar força aqui no Município”.   

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Herança de pai para filho  

Pedro José Ferreira, o Pedrinho, também tem sua trajetória de vida marcada pela fabricação de barcos. Dos seus 57 anos de vida, 25 são dedicados ao ofício que ele aprendeu com seu pai. Quando iniciou, eram apenas oito carpinteiros em Icapuí. “Evilásio foi um dos primeiros, assim como meu pai que também já era do ramo. Ele dizia que a atividade era mais lucrativa [em comparação com a pesca ou agricultura] e por isso me ensinou”, recorda.  

Diferente dos carpinteiros navais contemporâneos – como os filhos de Seu Evilásio – Pedrinho ainda mantém a fabricação de forma manual, sem a utilização de equipamentos ou máquinas industriais. O processo é semelhante ao que fora aprendido no final dos anos 1990. “A diferença é que hoje tenho as ferramentas, antes nem isso tinha”.  

Legenda: Pedrinho fabrica barcos de menor porte, tudo de forma manual, sem utilização de maquinário
Foto: Kid Jr

avanço da profissão na região se deu com a chegada da Cooperativa de Pesca, Agricultura e Aquicultura Marinha de Icapuí (Coopam). Visualizando uma demanda crescente na área, a Coopam ofertou no início dos anos 2000 curso de formação para novos carpinteiros navais, “ministrado por um engenheiro da Marinha de Salvador”, recorda Pedrinho.  

Esses cursos não são mais ministrados há pelo menos dez anos, mas a formação conferiu grau de profissionalismo aos oito participantes. Foi o incentivo que o grupo precisava para alavancar a atividade. 

“Foi muito importante para todo mundo. Quem não tinha ferramentas, como eu, passou a ter a acesso e quanto mais você vai treinando, fabricando, mais especialista fica”, conta Pedro José.  
 

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Na época, com a procura em alta por barcos, somado a mão-de-obra qualificada ainda limitada, o ofício se tornou um negócio lucrativo para os padrões da época. “Quem era da roça sofria, e quem era pescador até ganhava um pouco mais, mas se sujeitava a muitos riscos. Passar dias no mar é complicado. Então a carpintaria era uma boa solução”, acrescenta.   

Ao passar do tempo, Icapuí se tornou referência na produção de barcos. No Ceará, o ofício está presente em outras cidades litorâneas, como Acaraú e Fortim. “Mas os carpinteiros daqui ainda se destacam. Aqui estão os melhores”, avalia Pedrinho.  

Legenda: Barcos produzidos em Icapuí são referência
Foto: Kid Jr.

Ofício desvalorizado 

A atividade, antigamente bem remunerada, hoje enfrenta “forte desvalorização” diz o carpinteiro. Devido a isso, Pedrinho passou a dividir o ofício de carpinteiro com o de pescador. “Passo seis meses pescando e no período de defeso fabrico os paquetes e reformo alguns barcos. Hoje é mais lucrativo pescar”, detalha.   

Para fabricação do paquete – nome dado às jangadas de pequeno porte – Pedrinho cobra entre R$ 2,5 mil e R$ 3 mil. Esse valor é dividido com um ou dois ajudantes.  

“Levo um mês e meio para finalizar. Então o apurado ao fim da produção é inferior ao que eu retiro do mar como pescador. Hoje a gente ganha uma mixaria, por isso tem poucos carpinteiros em atividade”, ilustra. 
  

Em sua avaliação, o ofício já mostra forte tendência de esvaziamento. “Acho que daqui a 50 anos não vai ter mais nenhum. Os jovens de hoje não querem mais trabalhar. Se for com maquinário industrial até que você encontra, mas na mão, como tinha aos montes antigamente, não encontra mais. Tentei ensinar aos meus três filhos, nenhum quis seguir meus passos”, lamenta Pedro.    

A fala encontra peso na análise do doutor em Ciências Marinhas Tropicais, Miguel Sávio de Carvalho Braga. Ele aponta dois fatores para a redução no número de carpinteiros navais: volume da pesca e falta de interesse dos mais jovens. . "A construção [dos barcos] é derivada da pesca. Se cai a oferta da pesca, teremos redução na demanda por barcos", ilustra.

O especialista detalha que a, antigamente, as únicas opções de renda eram ir ao mar ou a agricultura. "Hoje surgiram várias outras opções, menos perigosas e cansativas, e às vezes mais rentáveis. Portanto, os mais novos acabam optando não seguir o caminho dos pais".

No entanto, ainda existem famílias que passam a expertise do ofício por gerações. A poucos quilômetros do estaleiro de Pedrinho, hoje ocupado com a fabricação de jangadas pequenas, em um trabalho quase solo, está o estaleiro de Seu Evilásio, palco de trabalho de seus quatro filhos e netos. A realidade no local difere do quintal de Pedro José, assim como o entendimento dos carpinteiros quanto ao futuro.  

De longe os grandes barcos – utilizados geralmente na pesca do atum – chamam a atenção. São três com mais de 16 metros. Imponentes, os aparatos navegantes dão mostras de que ali o trabalho é pujante e incansável. Seu Evilásio, aposentado, hoje acompanha de perto o ofício que ensinou aos seus descendentes, que seguem a cabo o aprendizado.  

Legenda: Estaleiro se destaca pelos barcos de grande porte
Foto: Kid Jr.

Jaivam Costa é um dos que desempenham a atividade. Ao lado do filho, de 23 anos, ele constrói o barco e profetiza o futuro. “Acho que nossos filhos vão continuar, a atividade não vai morrer”. Guilherme Carvalho consente a previsão do pai. “Estou aprendendo, é puxado, mas quero seguir”, diz.  

Jaivam, Guilherme, Seu Evilásio e Pedrinho, no entanto, têm pensamentos harmônicos quanto a valorização do ofício. “Hoje ninguém mais quer pagar o valor que nossa atividade realmente merece”, diz Jaivam. Ao seu favor, assim como antecipado por Pedro José, estão os maquinários industriais dispostos no estaleiro da família que aceleram a fabricação.   

No estaleiro com maquinário mais tecnológico, como o utilizado para cortar as madeiras – a maioria vinda do Pará – um barco de 16 metros leva cerca de 11 meses para ficar pronto. No quintal de Pedrinho, uma embarcação de 11 metros “pode demorar um ano e meio”, estima.   

  

Legenda: Maquinário reduz tempo de produção dos barcos
Foto: Kid Jr

Apesar desse cenário que aponta para um horizonte de constantes mudanças com novos atrativos, o especialista em ciências Marinhas Tropicais considera que o ofício não será se extinguirá. Ele destaca que a pesca, por ser evolutiva e adaptativa, sempre proverá demanda por embarcações. 

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