Juazeiro como um espaço sagrado

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Redação producaodiario@svm.com.br
As manifestações místicas das beatas fizeram da cidade um teatro em que se reencenava a Paixão

Fortaleza. Na sua pesquisa, Edianne Nobre localiza e destaca duas obras que narram o movimento religioso feminino e sobre as beatas envolvidas no processo episcopal. "As beatas do padre Cícero: participação feminina leiga no movimento sócio-religioso de Juazeiro do Norte" (1998), de Renata Marinho Paz, e "Maria do Juazeiro: a beata do milagre" (1999), da psicóloga Maria do Carmo Pagan Forti.

Mas apesar de se configurarem exceções relevantes dentro da bibliografia sobre o tema, os trabalhos centram-se geralmente na figura de Maria de Araújo, ora como embusteira, ora como "protagonista do milagre", ora como assistente do Padre Cícero em sua missão religiosa.

"Minha inquietação acerca da narrativa histórica, literária ou memorialista sobre os eventos de Juazeiro partem da constatação de uma obliteração desse grupo de mulheres (leigas, e em sua maioria, pobres e analfabetas) e da centralização na pessoa do Padre Cícero Romão Batista, que apesar de ser tido como um refratário às decisões diocesanas representa o mundo eclesiástico, essencialmente masculino", pontua a historiadora.

Segundo ela, seu interesse pelo tema surgiu na graduação em História, pela Universidade Regional do Cariri (Urca), quando as leituras de pesquisadores como Ralph Della Cava e da documentação encontrada no Departamento Histórico Diocesano do Crato, onde se encontra o processo episcopal e correspondência da época, abriu para ela narrativas até então desconhecidas. "Foi uma surpresa, até porque nasci e cresci em Juazeiro, e não sabia dessa atuação das beatas, só da Maria de Araújo".

De acordo com ela, Juazeiro transformou-se num lugar onde o ritual antropofágico do comer e degustar Cristo foi a cena central do espetáculo protagonizado não só por Maria de Araújo, mas pelo próprio Padre Cícero, por outros padres e beatas e também pelos devotos que legitimaram aquele espaço como o lugar onde vertia o "sangue precioso de Cristo". "Esse espetáculo, ao mesmo tempo em que chamava a atenção da Diocese para uma ´nova ordem das coisas´, como mais tarde irá dizer o bispo dom Joaquim, também atiçava a curiosidade de centenas de pessoas que passaram a peregrinar procurando ver a manifestação da hóstia sagrada ou mesmo adorar os sanguíneos que serviam de apara ao sangue que Cristo derramava naquele pequeno povoado no sul do Ceará", argumenta.

Atualmente, a historiadora é doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde pretende dar continuidade ao estudo sobre as beatas do Cariri, mas a partir de um novo recorte. "Desta vez, estou trabalhando como essas mulheres compõem os relatos registrados no processo episcopal. Pretendo trabalhar a partir dos sermões do Padre Cícero, das leituras religiosas disponíveis na época e na região, além das formas de organização da fé no sertão nordestino. Minha questão é saber como essa formação tornou propícios esses milagres".