Construção de hospital no Crato reacende debate sobre criação de leitos em unidades psiquiátricas
Um dos pontos da discussão é que uma lei estadual veta a criação de hospitais psiquiátricos e incentiva a abertura de leitos para pacientes da saúde mental em unidades gerais
A construção de um hospital particular com leitos de internação para pacientes da saúde mental no bairro Muriti, no Crato, interior do Ceará, reacendeu o debate sobre o cumprimento dos preceitos da Reforma Psiquiátrica no Ceará. A unidade, prevista para funcionar no segundo semestre de 2022, deve ter atendimento emergencial e ambulatorial, e ao menos 30 vagas de internação.
A execução da obra já teve início e provoca discussão porque desde a década de 1990 há, no Estado, uma lei que veta a construção ou ampliação de leitos psiquiátricos em unidades especializadas. O indicado é a criação e manutenção de vagas do tipo em unidades gerais.
Contudo, mesmo que as prerrogativas da Reforma Psiquiátrica sejam de redução das hospitalizações e de que, quando necessário, o internamento desses pacientes deve ocorrer em hospitais gerais para acabar com a segregação em unidades específicas, na prática, ainda há muitos percalços para que seja efetivada.
Em paralelo, as demandas por internação continuam e a equação do problema na realidade parece distante.
No Ceará, a Lei Estadual 12.151/1993 estabelece, dentre outras regras, que “fica proibido no território do Estado, a construção e ampliação de hospitais psiquiátricos, públicos ou privados, e a contratação e financiamento, pelos setores estatais, de novos leitos naqueles hospitais”.
Já a Lei Federal 10.216/2001 que agrega os princípios da Reforma Psiquiátrica, não faz menção textual explícita (como a estadual) à restrição de abertura ou manutenção de leitos psiquiátricos em hospitais especializados. Mas reforça que a internação só será indicada quando os recursos extra-hospitalares forem insuficientes.
Além disso, indica que a internação será estruturada de forma a oferecer assistência integral ao paciente com transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais e de lazer.
A norma federal também estabelece que é vedada a internação em instituições com características asilares.
No caso do hospital a ser construído no Crato, nem o Conselho Estadual de Saúde do Ceará (Cesau/CE), nem a Secretaria Estadual da Saúde, segundo afirmaram ao Diário do Nordeste, foram informados oficialmente ainda sobre a iniciativa. O Ministério Público Estadual também foi procurado, mas até o fechamento desta matéria não deu resposta.
Fórum destaca retrocesso
Em nota pública sobre a construção do hospital psiquiátrico no Crato, o Fórum Cearense da Luta Antimanicomial - compostos por pacientes, familiares e profissionais da saúde mental - evidencia que a iniciativa de construção do hospital infringe a Lei Estadual de 1993 e afronta a Federal de 2001 cujo foco é o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
No documento consta que "a construção representa mais um passo da atual política de retrocesso na saúde mental do País que inscreve digressões da Reforma Psiquiátrica no recrudescimento das arcaicas práticas manicomiais e estigmatizantes das pessoas com sofrimentos psíquicos".
Procurado pelo Diário do Nordeste, o vice-presidente do Cesau, Francisco Adriano Duarte Fernandes, informou que a entidade até a presente data não recebeu de forma oficial o projeto ou proposta para discussão. “Assim, que a pauta seja demandada ao pleno do Cesau, tomaremos um posicionamento por meio do colegiado”, acrescentou em nota.
No Ceará, conforme a Secretaria Estadual da Saúde (Sesa) há quatro hospitais psiquiátricos - entre público, privado e filantrópico - com leitos ligados ao SUS:
- Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto com 180 vagas de internação;
- Sopai Hospital Infantil, no qual há um convênio de 25 vagas de internação;
- Hospital Nosso Lar com 160 vagas de internação;
- Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo com 120 vagas de internação.
Já os leitos psiquiátricos em unidades de saúde geral, informa a pasta, estão distribuídos nas cinco Superintendências Regionais de Saúde, e são apenas 147 no Estado todo.
Terreno foi doado pela Prefeitura
O terreno no qual a obra deverá ser edificada, no bairro Muriti, no Crato, tem 20.840 m³ e foi doado pela Prefeitura à empresa idealizadora do hospital. O empreendimento pertence à Ceará Sul Excelência em Saúde Mental e Familiar, uma composição cujo um dos sócios é o psiquiatra Thiago Macedo.
A doação foi aprovada na Câmara Municipal ainda em 2019 e consta na Lei 3.628/2019. O procurador geral do Município, Renan Xenofonte, afirma que o interessado protocolou um requerimento em 2019 no Conselho de Desenvolvimento Sustentável pedindo a doação do terreno para a construção de um centro de saúde mental.
“O primeiro ponto que tivemos que analisar foi a questão se havia ou não a contradição com a lei de 1993. Nos estudos a gente se deparou com uma lei federal que estabelece a política nacional nessa questão de saúde mental e buscamos informações com os interessados se era um hospital psiquiátrico naquele formato que a lei de 1993 fala. E ele nos apresentou o projeto, mostrou que é algo completamente diferente, humanizado”.
Conforme o procurador-geral, o entendimento é que não se trata de uma espécie de manicômio, e por isso o Conselho de Desenvolvimento aprovou a doação que posteriormente foi formalizada em lei. “Esse projeto foi aprovado na época por unanimidade neste conselho”.
Formato do hospital
O psiquiatra Thiago Macedo explica que a ideia é que o empreendimento pode ser chamado de Núcleo de Saúde Mental e tem, dentre outros propósitos, a garantia de atendimento ao paciente grave que precisa de uma intervenção mais aguda para “sair desse sofrimento mais breve possível”.
“No Brasil a gente vive um caos ainda, mesmo com o andamento da Reforma Psiquiátrica. Um buraco na assistência no que diz respeito ao paciente grave que precisa de uma intervenção mais aguda. A Reforma se inicia no Brasil em 2001, sendo que era um processo que já estava em discussão a mais de 20 anos. Essa lei vem para trazer inúmeros ganhos, avanços especialmente no que diz respeito à garantia dos direitos dos pacientes com transtorno mental", reforça.
Thiago também ressalta que o modelo dos hospitais psiquiátricos não pode ser asilar, manicomial, “como eram os modelos antigos, aqueles onde segregava o paciente, eles não tinham mais contato com a família, onde muitos deles eram institucionalizados”.
O médico destaca que a concepção da unidade no Crato está em sintonia com a Reforma Psiquiátrica. A ideia, defende, é ofertar aos pacientes ansiosos, com transtorno de pânico, com depressão, dentre outros, um tratamento integrado com um conjunto de profissionais.
Ele menciona ainda que a abertura do hospital está em acordo com as notas técnicas emitidas Ministério da Saúde, e mencionou a 11/2019, segundo ele, no sentido de compreender os hospitais psiquiátricos como uma unidade complementar dentro da RAPS e não mais serem vistos como equipamentos que precisam ser substituídos.
Questionado se essa oferta de serviço de internação psiquiátrica não poderia ocorrer em alguma unidade de atendimento geral na região, Thiago afirmou que sim, contudo, ponderou que na realidade há uma grande dificuldade na implantação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais, inclusive por resistência das unidades, e são recorrentes as queixas de famílias de pacientes sobre esse gargalo.
Na nota pública, o Fórum da Luta Antimanicomial reforça que se o problema é a carência de atenção psicossocial hospitalar nas regiões de saúde, é válido destacar que uma série de equipamentos devem compor essa oferta, como: os prontos socorros, as UPAS 24h, as enfermarias especializadas nos hospitais gerais ou os serviços hospital de referência para atenção às pessoas com transtorno mental ou necessidades decorrentes do uso de drogas.
O Fórum enfatiza que a Sesa e o Governo do Estado "têm demonstrado incapacidade de fazer cumprir a lei" (12.151/1993) e indica que se conduza estudo para subsidiar a tomada de decisão quanto à necessidade de enfermarias especializadas em hospitais gerais ou o estabelecimento de serviços de referência na saúde mental.