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Da presidência às prefeituras: saiba o que é cartão corporativo, quem pode usar e o limite do valor

Essa espécie de “cartão de crédito” com verba pública facilita o pagamento de despesas eventuais. O monitoramento é fundamental para garantir o uso adequado

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
Legenda: Gastos com o cartão corporativo entraram nos holofotes do País neste ano
Foto: Shutter

As revelações sobre os gastos do cartão corporativo do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), têm repercutido pelos indícios de abusos e desvios no uso do recurso.

Os dados sobre a utilização do dispositivo – uma espécie de cartão de crédito com dinheiro público – foram disponibilizados à população, pelo governo Lula, no início de 2023, quando, na esfera federal, foram publicizados os gastos do cartão corporativo de todos os ex-presidentes da República desde 2003.

Bombons, salgadinhos, leite condensado, lápis de cor, panetone, desodorante são alguns dos itens que constam nas notas fiscais do cartão corporativo na gestão Bolsonaro, entre 2019 e 2022. 

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Os dados foram solicitados em dezembro de 2022 pela Fiquem Sabendo – agência de dados especializada na Lei de Acesso à Informação – e disponibilizados em 12 de janeiro de 2023. Inicialmente, a estimativa da Secretaria-Geral da Presidência é que o ex-presidente gastou R$ 27,6 milhões no cartão corporativo. Mas o entendimento era que os dados estavam incompletos. 

Segundo o Portal da Transparência, as despesas ultrapassam R$ 75 milhões. Após a liberação dos dados, o Ministério Público de Contas solicitou ao Tribunal de Contas da União (TCU) a apuração do uso do cartão corporativo por Bolsonaro. 

Um outro ponto importante é: apesar de o debate estar voltado para a presidência, o mecanismo pode ser usado tanto pelo Governo Federal, como por governadores e prefeitos. Mas, qual é, de fato, a finalidade do cartão corporativo? Quais pagamentos podem ser feitos? Quais os limites?

Para esclarecer esses e outros pontos, o Diário do Nordeste consultou as regras de uso divulgadas pela Controladoria-Geral da União (CGU) e ouviu o professor do Departamento de Contabilidade da Universidade Federal do Ceará (UFC); Roberto Sérgio do Nascimento; e o professor de Ciências Contábeis e coordenador do Observatório de Finanças e Orçamento Público (OBFIO) da Universidade Estadual do Ceará (Uece); Manuel Salgueiro. 

Desde quando o cartão corporativo é utilizado?

Desde 1998, normas do governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso abriram possibilidades de uso de cartões de crédito corporativos para a compra de passagens aéreas. Em 2001, FHC instituiu formalmente por decreto (3892/2001) o uso do cartão para outras finalidades.

Já em 2005, também via decreto (5355/2005) no primeiro governo Lula, os cartões  passaram a ser chamados oficialmente de Cartões de Pagamento do Governo Federal (CPGF). Em 2008, com outro decreto (6370/2008) os cartões passaram a ser o dispositivo obrigatório para a efetivação dos gastos do Governo Federal com o chamado suprimento de fundos. 

E o que é suprimento de fundos?

Conforme a CGU, o suprimento de fundos é um adiantamento dado ao servidor para pagamento de despesas, com prazo certo para uso e comprovação de gastos. 

No caso dessas despesas não existe uma obrigatoriedade de licitação, mas as regras de uso são as mesmas que se aplicam a todas as compras na gestão pública e devem prezar pela legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, e prezar pelo princípio da isonomia e da aquisição mais vantajosa.

O que é o cartão corporativo e qual a finalidade?

É uma forma de pagamento adotada na administração pública quando o agente público não tem condições de usar a sistemática usual de pagamentos (licitações, por exemplo) ou quando não pode utilizar esta regra em determinadas questões circunstanciais, como em operações emergenciais, pequenos gastos ou gastos sigilosos, explica professor do Departamento de Contabilidade de UFC, Roberto Sérgio do Nascimento. 

Na prática é o Cartão de Pagamento do Governo Federal (CPGF) – cartão corporativo – é um dispositivo tido com ágil e eficaz que, segundo a CGU, “funciona de forma similar ao cartão de crédito que utilizamos em nossas vidas, porém dentro de limites e regras específicas”. 

“Ele basicamente surge para dar mais celeridade a um tipo de despesa (suprimento de fundos) que é um adiantamento feito para um funcionário para pagar despesas de pequeno valor. Nessa perspectiva, o cartão dá mais funcionalidade e mais celeridade nos gastos. Faz com que a prestação de contas seja mais transparente”, diz o professor Manuel Salgueiro. 

Quais servidores podem usar o cartão corporativo? 

“Não existe um servidor específico que pode utilizar os cartões corporativos, basta que ele receba delegação do dirigente do órgão para o exercício dessa responsabilidade”, esclarece o professor Roberto. No Governo Federal, exemplifica, existem 6.307 portadores de cartão em 2022. 

O cartão corporativo, informa a CGU, é emitido em nome do órgão/unidade gestora, com identificação do portador. Para isso, o Governo Federal firma um contrato com uma empresa administradora de cartão de crédito para operacionalizar o uso. Cada unidade do governo pode aderir ao contrato.

Cada órgão tem um ordenador de despesa (gestor responsável por administrar o gasto) que fornece o cartão corporativo aos servidores que têm necessidade de realizar esse tipo de gasto (suprimento de fundos) nas funções e atividades do dia a dia. 

Quais os cuidados os servidores devem manter no uso do cartão?

O professor explica que “os cuidados com relação ao uso deles se referem a que as despesas realizadas não sejam empregadas para a fuga à sistemática de licitação, ou seja, a compra de bens e serviços que, normalmente, deveriam ser licitados”. 

Outro aspecto, reforça ele, é que além das normas de uso, o valor recebido por servidor é limitado a determinadas margens das compras de bens e serviços autorizados na lei de licitações. 

“Logo, é possível que num mesmo órgão existam vários servidores com cartões ou valores em espécie para realizar os pagamentos devido estes valores serem baixos”.

Além da gestão federal, governos estaduais e prefeituras também usam o cartão?

“A sistemática pode ser adotada por quaisquer órgãos públicos, quer federais, estaduais ou municipais, desde que o ente federativo crie suas próprias regras para que se possa atender ao princípio da legalidade. E mais, a regra federal não vale para estados, municípios e vice-versa”, explica Roberto Sérgio.

O professor Manuel reitera que “pode existir em qualquer esfera: federal, estadual ou municipal, desde que ele seja institucionalizado”. 

No Ceará, detalha ele, “acredito que tanto no Governo do Estado, como na Prefeitura de Fortaleza, há essa perspectiva que o cartão seja concedido. Ele (cartão) pode ser utilizado desde que seja entendido como adequado, por parte do prefeito e do governador”, acrescenta. 

O que é possível pagar com esse cartão?

  • Despesas de pequeno vulto (até R$ 800 em compras e serviços ou R$ 1.500 na contratação de obras e serviços de engenharia, conforme Portaria 95/2002 do Ministério da Fazenda);
  • Despesas eventuais, inclusive em viagens e com serviços especiais, que exijam pronto pagamento (excluída nesse caso a possibilidade de uso do Cartão para o pagamento de bilhetes de passagens e diárias a servidores); 
  • Despesa feita em caráter sigiloso, conforme se classifica em regulamento estabelecido por cada órgão;

Na prática, todos os serviços de pequeno vulto são passíveis de serem incluídos no suprimento de fundos. São exemplos comuns, segundo a SGU: reparos, conservação, adaptação, melhoramento ou recuperação de bens móveis ou imóveis, serviços gráficos, fotográficos, confecção de carimbos, confecção de chaves, etc.

Outras despesas, como ornamentações, eventos, publicações e livros, por exemplo, só podem ser utilizados se forem de pequeno vulto, a compra tenha caráter excepcional e haja interesse público nesse gasto. 

“Todos estes atributos são definidos previamente no regulamento que institui o mecanismo. Há também que se mencionar a limitação de valores para estas despesas e, lógico, que tais despesas não sejam geradas como fraude à licitação pública”, ressalta o professor Roberto Sérgio. 

Ele também destaca que “em qualquer caso o gestor não está livre para realizar despesas de sua livre e espontânea vontade. O princípio que rege tais gastos é o interesse público. Assim, o gestor não pode comprar uma caneta montblanc só porque gosta da escrita dela, ou construir um prédio com piso de granito raro pela simples beleza do piso. Há que se compatibilizar o uso do bem ou serviço adquirido com a necessidade pública, sempre, sob pena de desvio de finalidade”. 

Quais os limites de gastos dos cartões corporativos?

R$ 15 mil por mês para gastos relacionados à execução de obras e serviços de engenharia; com o limite de R$ 1.500,00 para despesas de pequeno vulto no caso de execução de obras e serviços de engenharia;
R$ 8 mil por mês para gastos relacionados a compras e outros serviços; com limite de R$ 800 para despesas de pequeno vulto, no caso de compras e outros serviços;

As despesas do cartão são submetidas a monitoramento de órgãos de controle como os tribunais de conta?

O professor Roberto Sérgio do Nascimento reforça que qualquer despesa realizada pela Administração Pública Federal pode ser auditada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) ou pela Controladoria-Geral da União (CGU), no caso federal. 

No âmbito dos Estados e municípios, diz ele, são responsáveis por esta fiscalização os tribunais de contas e as controladorias. “Contudo, para que tais gastos sejam realizados a lei não exige a verificação prévia das controladorias ou dos tribunais de contas”, acrescenta. 

Ele acrescenta que “estes monitoramentos podem ocorrer posteriormente à realização dos dispêndios a juízo desses órgãos ou mediante provocação da sociedade em geral, do poder legislativo (qualquer membro) ou do ministério público”.

O professor Manuel Salgueiro também pondera que “como se trata de valores de pequena monta, esses gastos não são monitorados com frequência. Esses gastos, via de regra, só vêm a partir do momento em que se enxerga uma determinada irregularidade e você acaba aprofundando esses gastos. Isso é feito muito esporadicamente”.

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