Como a reforma do Código de Processo Penal impactaria em casos de grande repercussão no Ceará

Entidades ligadas ao sistema de Justiça estadual debatem pontos do projeto que tramita há dez anos na Câmara

Escrito por Alessandra Castro , alessandra.castro@svm.com.br
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Legenda: O projeto da reforma no CPP gera divergências entre entidades ligadas ao sistema de Justiça
Foto: José Leomar

"Começou um pesadelo na minha vida. Fui preso, fiquei detido, mesmo eu gritando tanto por fora como por dentro que era inocente": o relato é de Cristiano B. M., mantido preso provisoriamente por um ano e sete meses injustamente, acusado de crimes que não cometeu. Atualmente trabalhando como costureiro, ele agradece a Defensoria Pública do Ceará por acreditar na sua história e conseguir provar na Justiça a sua inocência. 

A confusão que levou Cristiano a ficar preso injustamente entre setembro de 2018 e abril de 2020, por acusações de homicídios, poderia ter outro rumo se o novo Código de Processo Penal (CPP) estivesse em vigor na época do caso, conforme aponta o defensor público Paulo Carmo.

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A reforma do CPP foi aprovada em 2010 no Senado Federal e, desde então, tramita na Câmara dos Deputados. Neste ano, as discussões sobre o tema ganharam celeridade em meio à pandemia, o que tem motivado debates entre entidades ligadas ao sistema de Justiça e deputados, inclusive no Ceará. 

O último parecer da matéria apresentado pelo relator, deputado João Campos (Republicanos-GO), na Comissão Especial instalada para analisar a medida antes de ir à votação no plenário da Câmara, prevê a abertura de investigação defensiva, que pode ser conduzida por advogados ou defensores públicos na tentativa de produzir informações que garantam a ampla defesa do investigado ou acusado.  

Além disso, o relatório também estabelece prazos máximos para prisões preventivas, que poderão ser de 180 dias, se aplicadas durante a investigação criminal ou antes de sentença recorrível; e de até 360 dias, se decretada após sentença condenatória recorrível. 

A medida, segundo o projeto, busca diminuir a quantidade de presos provisórios no sistema carcerário brasileiro e dar celeridade ao julgamento das ações.  

O caso de Cristiano

Para Paulo Carmo, a reforma poderia até não evitar a injustiça no caso de Cristiano, mas com certeza daria mais chances para a sua defesa. 

"A investigação defensiva é de extrema importância na atuação da defesa. Caso fosse aplicada no caso do Cristiano, poderia esclarecer quanto a não autoria do Cristiano em relação ao crime imputado".
Paulo Carmo
Defensor Público

Além disso, o defensor acrescenta que, se os prazos da prisão preventiva estivessem em vigor, "certamente ele não estaria preso durante todo o trâmite processual, uma vez que ele foi absolvido em ambos os processos". 

O defensor também pontua que falhas nas acusações contra Cristiano poderiam ter sido evitadas, se estivesse em vigor a forma de reconhecimento de pessoas prevista no projeto do novo CPP.  

Reconhecimento de suspeitos

Em um dos casos, o costureiro foi reconhecido como autor de um assassinato por meio de uma fotografia apresentada pela Polícia. No entanto, na época do crime, ele estava preso provisoriamente na CPPL III, em Itaitinga, devido à acusação falsa do primeiro delito.

Somente após comprovar que ele estava realmente em cárcere, com certificado da própria unidade penitenciária, Cristiano foi absolvido sumariamente pelo juiz do caso. 

Pelo novo CPP, é necessário apresentar de forma sequencial, no mínimo, cinco suspeitos com semelhanças físicas no reconhecimento de pessoas. Atualmente, essa medida não é necessária. 

"No processo 1, testemunhas disseram que ele estava na cena do crime e que ele foi um dos autores. Ele foi sendo processado até chegar ao tribunal do júri e, no dia do plenário, as próprias vítimas disseram que ele não estava na cena do crime, que não era ele. No processo número 2, ele foi reconhecido pela própria vítima. Só que o reconhecimento se deu na fase investigativa de forma irregular, por fotografias. Quando tomamos ciência do segundo processo e fomos analisar, vimos que ele não poderia ter cometido esse crime porque ele estava preso preventivamente em decorrência do primeiro caso", explica o defensor.

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Falhas no reconhecimento 

De acordo com o defensor Paulo Carmo, há a possibilidade de o nome do verdadeiro responsável pelos homicídios ser homônimo ao de Cristiano. Além disso, outras falhas também contribuíram para o desfecho. 

O costureiro foi preso logo após sair do trabalho para almoçar, enquanto prestava um serviço de vidraçaria em Paracuru. Ao informar o seu nome durante uma abordagem policial, ele soube que tinha um mandado de prisão em aberto contra ele e foi levado sob custódia.

Apesar de já ter deixado a prisão há um ano, as lembranças do que passou durante o período de reclusão ainda estão vivas.

“Eu me lembro de um episódio importante que meu filho foi lá, olhou para mim e falou assim: ‘papai, tu é ladrão?' E eu tive de mentir para ele: ‘o papai está trabalhando aqui’. Ele ia embora chorando, querendo que eu fosse com ele. E eu não podia ir, ninguém deixava eu ir, porque eles achavam que eu tinha matado alguém (sic)”.
Cristiano

Agora, Cristiano busca uma indenização para tentar reparar os danos causados à sua vida. “É revoltante porque fica a sensação de impotência, como se eu não valesse nada. Eu falei mil vezes que era inocente. Por que não acreditaram em mim? Se tivessem investigado melhor, poderiam ter evitado (a prisão injusta)”. 

Caso Marcelo Barberena

Todavia, nem todos os pontos do parecer do novo Código de Processo Penal são unânimes. Para representantes do Ministério Público, há vários artigos que precisam ser revistos e melhor analisados, como os que limitam a abertura de investigações pelo Ministério Público e o que impede a apresentação de provas colhidas durante o inquérito policial no Tribunal do Júri. 

Para o promotor de Justiça Luís Neto, que atuou no caso de Marcelo Barberena, o julgamento poderia ter tomado outros rumos caso a reforma do CPP estivesse vigente na época.

No dia 2 de dezembro de 2020, Barberena foi condenado a 84 anos de prisão, por ter assassinado a esposa, Adriana Moura Pessoa de Carvalho Moraes, e a filha Jade Pessoa de Carvalho Moraes, de apenas oito meses, em uma casa de praia da família da vítima em Paracuru, em 2015. O julgamento de Barberena é o mais longo da história do Ceará e só ocorreu após cinco anos do crime. 

Marcelo Barberena
Legenda: O gaúcho Marcelo Barberena Moraes foi preso no dia 23 de agosto de 2015
Foto: Arquivo

No julgamento, o promotor Luís Neto apresentou aos jurados depoimentos colhidos durante o inquérito, o que não seria mais permitido se o Código estivesse aprovado.  

Marcelo Barberena chegou a ser preso no dia do crime, em agosto de 2015, mas foi posto em liberdade por ordem do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em agosto de 2019, devido a excesso de prazo da prisão.

Desde o dia 2 de dezembro, data da sua condenação, ele está preso cumprindo a sentença. Neste ano, o Tribunal de Justiça negou um pedido de habeas corpus impetrado pela defesa de Barbarena. Ele chegou a confessar o crime no início da investigação, mas depois voltou atrás e disse que foi coagido por policiais. 

"Esse foi o julgamento mais duradouro do Estado do Ceará, e como forma de convencer os jurados de que o acusado era o responsável por aquele crime, o Ministério Público, durante os debates, mostrou os diversos depoimentos que foram produzidos na fase de investigação. Se esse projeto fosse vigente quando da realização do julgamento, ele seria nulo por esse motivo".
Luís Neto
Promotor de Justiça

Advogado de defesa do caso, Nestor Santiago discorda. Segundo ele, quanto a apresentação de provas colhidas durante o inquérito policial, não há mudanças significativas com a reforma.

O advogado também ressalta que o caso ainda está em andamento. Recurso apresentado pela defesa, e que aguarda julgamento do Tribunal de Justiça do Ceará, já traz argumento quanto a este ponto. "O Código Processual Penal não permite condenação apenas com base em provas do inquérito, o que por si só levaria a uma anulação da condenação", argumenta.

Além disso, outro ponto que tem gerado mobilização da Associação Cearense do Ministério Público (ACMP) é o que restringe a abertura de investigação criminal ao MP apenas para quando houver risco à elucidação dos fatos pela Polícia, em razão de abuso de poder econômico ou político. 

"Se esse projeto for aprovado com essas regras, irá consagrar a impunidade de crimes no Brasil", avalia Luís Neto. 

Audiências virtuais

Já o presidente da Associação Cearense de Magistrados (ACM), Daniel Carvalho, aponta pontos positivos e negativos no parecer da reforma do Código de Processo Penal. Para a entidade, uma mudança positiva é a que permite a realização virtual de audiências e interrogatórios.

audiência por videoconferência
Legenda: Audiências por videoconferências já têm sido uma realidade no Judiciário cearense na pandemia
Foto: TJCE

Apesar do avanço, juízes avaliam que a medida poderia ser mais abrangente, já que a previsão se aplica apenas em casos excepcionais. Ou seja, quando os procedimentos não podem ser realizados presencialmente.

"Novas tecnologias foram incorporadas com êxito no Judiciário. Realizamos cotidianamente audiências por videoconferência, o que possibilitou a continuidade da prestação jurisdicional mesmo nessa época de isolamento da pandemia. É necessário então que essas novas tecnologias sejam incorporadas de forma definitiva no processo penal".
Daniel Carvalho
Presidente da ACM

Outro ponto reivindicado pela entidade é a simplificação do trânsito em julgado para que o réu possa cumprir a pena. Além disso, os magistrados também esperam a simplificação de recursos e condições que deem maior celeridade ao julgamento de processos.

"Queremos que eles procurem meios de simplificar o trânsito em julgado, porque não é possível que se demore dez, 15 anos para ter o trânsito em julgado e a pessoa começar a cumprir a pena. É o que nós vemos quando são pessoas que possuem condições e conseguem ficar protelando a execução da pena com recursos. E aí a pessoa vem iniciar o cumprimento da pena 20 anos depois, dá uma sensação de impunidade", afirma Carvalho.