Reforma no Código de Processo Penal volta à pauta do Congresso em meio a polêmicas
Deputados federais cearenses e entidades do sistema de Justiça fazem ponderações sobre impactos nos trâmites de investigação e defesa
A proposta de reforma do Código de Processo Penal (CPP) que voltou a tramitar na Câmara dos Deputados na atual legislatura tem motivado debates entre entidades ligadas ao sistema de Justiça e deputados.
No Ceará, parlamentares reconhecem a necessidade de fazer uma reforma na legislação, mas criticam alguns pontos apresentados e a celeridade repentina com que o tema tem sido tratado na Casa Legislativa em meio à pandemia da Covid-19.
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Vigente desde 1941, o CPP já passou por importantes mudanças ao longo dos anos, mas nunca teve uma reformulação completa para adequar todos os seus pontos à Constituição Federal de 1988.
O projeto com a reforma do Código, de autoria do senador José Sarney (MDB-MA), foi aprovado pelo Senado em 2010 e, desde então, aguarda votação na Câmara. Atualmente, ele tramita em Comissão Especial, criada para analisar a matéria, cujo relator-geral é o deputado João Campos (Republicanos-GO).
O último parecer apresentado por ele sobre o tema tem sido alvo de críticas e divide opiniões de entidades ligadas ao sistema Judiciário.
Diante de pressões da sociedade civil, a proposta deve ter mais tempo de discussão no colegiado. O presidente da comissão especial, Fábio Trad (PSD-MT), apresentou requerimento ao presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), para prorrogar os trabalhos por mais 15 sessões antes da votação do parecer de João Campos, tendo em vista que o prazo atual está próximo do fim e ainda não há consenso na Comissão Especial sobre o texto da reforma.
Principais mudanças
Juiz de garantias
Entre as principais mudanças sugeridas no parecer do deputado João Campos, está a que estabelece prazo de 5 anos para implementação do juiz de garantias, figura responsável por acompanhar as investigações criminais e garantir a legalidade da apuração do inquérito policial e os direitos individuais dos envolvidos. Por estar envolvido na investigação, ele não pode atuar na ação penal do caso.
O juiz de garantias já havia sido aprovado no pacote da lei anticrime de 2019, mas ainda não foi implementado.
Atuação do MP
A proposta também limita a atuação do Ministério Público, que só poderá abrir investigação criminal quando houver risco à elucidação dos fatos pela Polícia, em razão de abuso de poder econômico ou político.
Esse ponto tem provocado reações da categoria, tendo em vista que atualmente o Ministério Público não precisa ser demando para abrir investigações que possam acarretar em ações penais.
Prisão preventiva
As prisões preventivas agora terão uma limitação de tempo que poderão ser de, no máximo, 180 dias, se aplicadas durante a investigação ou antes de sentença recorrível, e de até 360 dias, se decretada ou prorrogada por ocasião da sentença condenatória recorrível - no caso desta, não será computada, em caso de prorrogação, o período cumprido durante a investigação.
A medida, segundo o projeto, busca diminuir a quantidade de presos provisórios no sistema carcerário brasileiro e dar celeridade ao julgamento das ações.
Audiências virtuais
O texto prevê, ainda, o uso de tecnologias para interrogatórios de presos e audiências virtuais, inclusive de custódia, em casos excepcionais - ou seja, quando os procedimentos não puderem ser realizados presencialmente.
Investigação defensiva
O parecer do relator ainda prevê a adoção da investigação defensiva, que pode ser conduzida por advogados ou defensores públicos na tentativa de produzir informações que garantam a ampla defesa do investigado ou acusado.
O que dizem os deputados cearenses
Na bancada federal cearense, deputados consideram necessária a atualização do Código de Processo Penal, mas defendem uma discussão maior e criticam o atual texto do parecer sobre a medida.
Para o líder da bancada, deputado Eduardo Bismarck (PDT), os pontos que restringem a atuação do Ministério Público são os mais preocupantes.
"Alguns pontos ainda precisam ser melhorados, como os que podem favorecer quem comete ilícitos, muito nitidamente na possibilidade de não utilização em júri de provas localizadas durante a investigação. E um outro ponto é o que tira do Ministério Público a possibilidade de apresentar um acordo de não persecução penal, levando isso para o âmbito policial"
O deputado Capitão Wagner (Pros) também vê pontos preocupantes no projeto, que podem trazer impactos no combate à criminalidade.
"A gente sabe que o Ministério Público tem em andamento em todo o País várias investigações contra políticos. Com o novo Código de Processo Penal, o Ministério Público só poderá realizar investigações se solicitado pela Polícia daquele Estado. Polícia é subordinada ao governador. Vocês acham que o governador de cada estado vai permitir que os seus aliados políticos sejam investigados?"
Outro ponto apontado como ruim por Wagner é o que determina a apresentação de cinco suspeitos para reconhecimento da vítima, caso seja necessário.
"Nas investigações que estão em andamento, quando necessário for identificar um delituoso, é necessário que a Polícia venha a apresentar, além do delituoso, quatro pessoas que sejam parecidas com ele. O problema é que, se forem presos 20 indivíduos em um assalto a banco, a Polícia vai ter que arrumar mais 80 pessoas para proceder essa identificação", defende.
Para o deputado Heitor Freire (PSL), há artigos na proposta que "superprotegem" o réu.
"O projeto diminui o poder investigatório do Ministério Público, reduz a atuação dos promotores de Justiça e procuradores, superprotege o réu, penaliza a vítima em algumas situações, aumenta a burocracia entre tantas outras questões agora disfarçadas de “modernização” do texto, mas que, na prática, só irão facilitar a vida dos acusados"
O deputado Célio Studart (PV) reconhece a defasagem do CPP às novas demandas da sociedade, mas se diz preocupado com a influência de posicionamentos ideológicos nas regras colocadas e crítica a relevância em meio à pandemia.
"Acho interessante a criação de mais instrumentos para obtenção de provas digitais, mas vejo muitos pontos negativos graves. Por exemplo, o atual amplo poder de investigação do Ministério Público é reduzido a um caráter suplementar, fragilizando muito a atuação dos procuradores. Além disso, a proposta impede condenação só com provas indiciárias, um verdadeiro retrocesso no combate aos crimes de corrupção, haja vista que seu uso foi essencial na lava-jato e mensalão"
Entidades de defesa
Presidente da Associação Cearense do Ministério Público (ACMP), Herbet Gonçalves Santos, dá exemplo de como a limitação na abertura de investigações pelo órgão poderia impactar em investigações de crimes do colarinho branco e em outros delitos, como homicídios e organizações criminosas.
"Um ponto que causa muita preocupação é a limitação do poder investigatório do Ministério Público. [...] Hoje, em alguns momentos, o próprio Ministério Público pode investigar. Ele tem prerrogativa de independência funcional, o que resguarda a atuação do promotor de Justiça, em especial na investigação de políticos, de facções criminosas, prefeituras e em alguns casos em que policiais podem ser investigados. Como a Polícia vai investigar a Polícia?"
Para ele, as limitações previstas ao MPCE são uma tentativa de tentar aprovar as vedações ao órgão previstas na PEC 37/2011, que foi rejeitada pela Câmara dos Deputados em votação em 2013.
Ele também reclama do artigo que proíbe, durante o Tribunal do Júri - responsável por julgar crimes intencionais contra a vida, como homicídios e latrocínios -, que as partes façam referências a depoimentos e outros recursos apresentados na fase da investigação criminal.
"No júri, por exemplo, o promotor que quiser pedir a condenação ou absolvição do acusado por ter praticado um homicídio, não vai poder citar uma prova de inquérito. outra situação também é que o juiz não poderia condenar com base em provas de inquérito", ressaltou.
Avanços
O presidente da Comissão de Estudos em Direito Penal da Ordem dos Advogados secção Ceará (OAB-CE), Matheus Braga, vê avanços no projeto, apesar de reconhecer a limitação da atuação do MP como algo negativo.
Ele ressalta que o projeto traz pleitos antigos do ponto de vista da defesa que buscam evitar prisões injustas e ilegais, bem como garantir o direito ampla defesa, a liberdade e a vida.
"Um aspecto positivo é a disposição de prazos máximos para prisões preventivas e para todas as medidas cautelares diversas da prisão. E o que são essas medidas cautelares? É você pagar uma fiança ou usar uma tornozeleira. Ou, embora não seja preso, não poder sair da sua comarca, entre outras. E agora o Código vem prevendo um prazo máximo para evitar que pessoas inocentes fiquem presas sem provas, sem julgamento, como a gente já viu", ressalta.
Ele acrescenta que, com os prazos definidos para prisão preventiva, o processo terá que andar mais rápido para ir a julgamento.
"Hoje, quase 40% da nossa população carcerária é de prisão preventiva. A gente tem uma das maiores populações carcerária do mundo, onde a maioria dos presos ainda está aguardando julgamento. Se o investigado for culpado, que ele seja julgado e punido, mas ele não deve carregar o fardo da morosidade do Poder Judiciário, nem as vítimas"
Braga comemora também o ponto que prevê a investigação defensiva no Código de Processo Penal brasileiro. Ele alega que a medida é utilizada em países como os Estados Unidos há muito tempo e busca garantir o direito à defesa já na investigação.
"A investigação defensiva é um pleito antigo da advocacia, da Defensoria. Ela estabelece um conjunto de prerrogativas e condições para o defensor, público ou privado, realizar investigações para apurar os fatos verídicos para se defender. Isso não interfere na investigação realizada pela Polícia ou pelo Ministério Público, porque toda investigação busca apurar a verdade. Se tiver algum interesse escuso por trás de qualquer uma delas, será rechaçado", ressalta