Baratas, bebês e as coisas de uma vida inteira

Escrito por Sávio Alencar , salencarlimalopes@gmail.com

Abigail teria uma vida absolutamente normal. Se não precisasse lembrar ao pai, Lúcio, que ela e a irmã, Berta, tinham fome. Se os três não morassem no apartamento mais sujo do mundo, de mobília pouca e gasta. Se não dividissem o teto com uma colônia de cupins, aranhas e baratas, que avançavam sobre copos, panos de prato e escovas de dente, atraídas pelos objetos que Lúcio acumulava e que transformavam o 402 em um museu de velharias.

Em “Os tais caquinhos” (Companhia das Letras, 2021), Natércia Pontes abdica de qualquer normalidade para explorar em seu romance de estreia o universo idiossincrático e nada asséptico de uma família em meados dos anos 1990, em uma provável Fortaleza, cidade natal da autora. Sucessor da coletânea de contos “Copabacana dreams” (Cosac Naify, 2012), o livro reafirma seu estilo, próximo do kitsch, e privilegia a observação de dimensões inusitadas da vida comum pelas lentes de Abigail.

Numa prosa fragmentada, a meio caminho entre o diário e o romance de formação, a irmã mais velha se demora na narração de seu mundo interior, povoado de conflitos escolares, paixões efêmeras e elucubrações sobre a vida limpa, confortável e ordenada que poderia ter se sua família fosse outra, com direito a roupa de cama cheirando a amaciante e geladeira abarrotada de bandejas de iogurte. Até sua vida íntima ser chacoalhada por uma gravidez inesperada.

No romance, forma e conteúdo mutuamente se sustentam. Para uma história que surpreende o leitor em seu decurso, as escolhas de composição e de linguagem são acertadas. Ambas fundam uma cena narrativa entre o sonho e a experiência lisérgica, repleta de imagens desconcertantes: “Tomar sopa de cera do ouvido de um cachorro ou milk-shake do catarro de um mendigo?”, uma irmã pergunta à outra, brincando. Cartas e bilhetes também se combinam à narração e provam a habilidade da escritora em mover-se entre vozes e tipologias textuais diversas.

Do que são feitas as famílias? Essa poderia ser a pergunta de base de “Os tais caquinhos”. Nele o leitor há de encontrar uma resposta que une humor e melancolia. Mas adianto: umas vivem pacificamente com lixo e baratas, outras não.

Sávio Alencar
Editor e pesquisador de literatura

Assuntos Relacionados
Jornalista
Gilson Barbosa
19 de Março de 2024
Jornalista. Analista Judiciário (TRT7) e Mestrando em Direito (Uni7)
Valdélio Muniz
18 de Março de 2024
Claudia Santos é presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-CE
Claudia Santos
15 de Março de 2024
Professor aposentado da UFC
Gonzaga Mota
15 de Março de 2024
Paulo Abner Aurelio Mesquita é líder de Plataforma 3D do Instituto Atlântico
Paulo Abner Aurelio Mesquita
14 de Março de 2024
Jornalista e senador constituinte
Mauro Benevides
14 de Março de 2024
Jornalista
Gilson Barbosa
13 de Março de 2024