Os Déficits que importam
No Brasil identifica-se multiplicidades de regras fiscais que se alternam em seus objetos de controle
A recente entrega do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2025, no qual o Governo Federal propôs a redução das metas de superávit primário dos próximos anos, reacende o debate e reforça a percepção de que o esforço para se buscar a sustentabilidade das contas públicas no médio prazo foi postergado.
O fato é que a complexa conexão entre contextos macroeconômicos e orçamento público afetam as estratégias a serem desenvolvidas para o aperfeiçoamento da ação governamental no firme propósito de melhorar a gestão dos recursos públicos, cumprir as responsabilidades e deveres em relação ao bem público e garantir o equilíbrio intertemporal das contas públicas. Nesse contexto inserem-se o capítulo das regras fiscais, segundo Chernavsky (2022), conceito no qual refere-se a uma restrição permanente sobre a política fiscal por meio de limites numéricos simples sobre agregados orçamentários e cujo objetivo é promover a austeridade fiscal.
No Brasil identifica-se multiplicidades de regras fiscais que se alternam em seus objetos de controle, tais como: a) regra de ouro e meta de resultado primário; b) limites para despesas com pessoal; c) de receita - compensação de renúncias de receitas; d) limites para dívida consolidada e mobiliária, operações de crédito e suas garantias; e o mais recente Regime Fiscal Sustentável. Cumpre destacar ainda que, os ímpetos da expansão fiscal e as pressões que eles exercem nos processos de governança orçamentária se robustecem pelo conflito entre Legislativo e Executivo em relação à forma como o orçamento é elaborado e executado. Só para termos uma ideia, em termos nominais, as emendas parlamentares saíram de R$ 3,43 bilhões em valores empenhados em 2015 para um montante autorizado de R$ 44,67 bilhões em 2024, dessa forma, os gastos decorrentes desse modelo não são alocados dentro de uma perspectiva estratégica com programas estruturados, cujas emendas pulveriza o dinheiro público em ações paroquiais, em vez de se integrarem numa estratégia nacional de investimento de Estado. O resultado é, governos se endividam, mas é a sociedade que paga duplamente, pelo custeio e a não geração de valor público esperado das políticas públicas.
A austeridade fiscal merece uma análise mais percuciente, uma vez que a expansão da dívida foi acompanhada pela redução significativa da tributação sobre a renda e a propriedade, das taxas de crescimento do produto, e pelo aumento das taxas reais de juros. Somos um país cujo sistema tributário continua regressivo tanto pelos impostos indiretos como pelos impostos diretos. Sendo assim, para além da hegemonia da incidência dos impostos indiretos, o Brasil é um dos poucos países do mundo no qual vigoram a isenção de lucros e dividendos distribuídos que reverberam na regressividade do IRPF, cuja evidência aponta para quem ganha mais de 320 salários-mínimos tem uma alíquota efetiva de 2,2% em igual patamar de quem ganha entre 3 e 5 salários-mínimos. Outra realidade é que os 10% mais ricos no Brasil capturam quase 60% da renda nacional, contribuindo para o Brasil se destacar como o único país que, simultaneamente, aparece na lista dos mais ricos e dos mais desiguais do planeta.
Agora, com relação às taxas de crescimento do produto e o nível das taxas de juros reais, importante ressaltar que o Brasil registra um crescimento econômico pífio em torno de 2% em média nos últimos 40 anos, enquanto nos últimos 25 anos apresentou uma taxa média de crescimento anual dos juros reais (4,6%) vis-à-vis ao crescimento do PIB de 2,1%. In casu, importante ressaltar que, se a taxa de juros real (r), dada a taxa de inflação, cresce mais do que o PIB (g), tudo mais constante, isso faz com que o serviço da dívida cresça também mais rápido que o PIB; será necessário, então, gerar superávit para que a relação dívida/pib se estabilize, impactando o nível de investimento enquanto variável discricionária diminuindo assim o crescimento econômico. Vale destacar, “não é a economia que deve equilibrar o orçamento, mas o orçamento é que deve equilibrar a economia”.
Nessa linha, dois laureados com o Prêmio Nobel, Paul Krugman e Joseph Stiglitz, defendem que os déficits não são necessariamente problemáticos, não existe óbice se há eficiência alocativa em investimentos e, principalmente, se esse gasto ocorre quando o objetivo é restabelecer a demanda agregada sem pressionar a capacidade instalada provocando inflação. Nesse diapasão, e de acordo com Keynes (1936), o sistema capitalista apresenta defeitos congênitos, dentre os quais, o aumento da concentração da renda e da riqueza, os quais, se não corrigidos, por meio da ação do Estado com uma política tributária progressiva, isto é cobrar mais de quem tem mais, combinada com uma política orçamentária regressiva, destinar mais para quem tem menos, o conduziria, inexoravelmente, para o colapso. A defesa do equilíbrio orçamentário em qualquer circunstância, não pode asfixiar os investimentos públicos prejudicando o crescimento econômico sustentável e inclusivo com a consequente redução da pobreza e a melhoria da qualidade de vida da população.
Por fim, desigualdades em patamares tão extremos, além da injustiça em si, podem provocar instabilidade econômica e política, baixo crescimento, reduzida mobilidade social e perda de confiança nas instituições e o próprio funcionamento da democracia é colocada em risco, como afirma o Papa Francisco, “não há democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça na desigualdade”. Os fatos estilizados que contribuem para nossa desigualdade de renda e social são os nossos verdadeiros déficits que importam.