Sem emprego, mães enfrentam desafios em dobro na pandemia

Sendo as provedoras de seus lares, mulheres que perderam a principal fonte de renda durante a crise sanitária se veem obrigadas a buscar novas formas de sustentar a família enquanto atendem as necessidades dos filhos

Escrito por Barbara Câmara , barbara.camara@svm.com.br
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Legenda: Zenilde Pires se divide entre vender bolos, cuidar das netas e organizar um bazar para garantir a renda
Foto: José Leomar

No salão de beleza ao qual se dedicou fielmente como funcionária, a depiladora Zenilde Pires passou 17 anos. Em casa, à espera do telefonema que a chamaria de volta para a reabertura durante a pandemia, foram três meses - quase intermináveis. Ainda assim, a mensagem esperada não veio. Aos 62 anos de idade, ela engrossa os números de desempregados no Ceará.

No Brasil, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnadc), 7 milhões de mulheres abandonaram o mercado de trabalho na última quinzena de março, quando começou a quarentena. São dois milhões a mais que o número de homens na mesma situação. É a primeira vez nos últimos três anos que a maioria das mulheres está fora da força de trabalho. Um cenário de desigualdades de gênero e raça, agravado pelo atual cenário de pandemia que se reflete também no Ceará.

Com mais da metade das mulheres fora do mercado de trabalho, o impacto na família é enorme. Zenilde representava a principal fonte de renda para as três filhas-netas, cujos cuidados ela assumiu desde que sua filha caçula- a mãe das meninas- adoeceu. Ela faleceu no fim de 2019, e as jovens Sara, 21, Clara, 16, e Nara, 14, continuaram morando com a avó. Sem o emprego da líder da família, a situação das quatro se agravou.

"Eu desabei. Liguei para a dona do salão pra questionar, só que não tinha carteira assinada nem nada, era só um contrato, como se eu 'alugasse' o espaço lá", lamenta. Um mês depois da demissão, soube que a administração do salão de beleza não pôde mantê-lo, e o estabelecimento fechou as portas de vez.

Zenilde Pires vive uma realidade que se observa, também, em números. A população, em geral, sofreu uma queda na taxa de participação na economia durante a crise causada pela pandemia do novo coronavírus, mas foram as mulheres - em especial, as que vivem com crianças de até 10 anos - que receberam o impacto de forma mais brusca.

A explicação parte de Marcos Hecksher, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Ele detalha que a taxa de participação, por grupo populacional, mede a porcentagem de pessoas com 14 anos ou mais que estejam trabalhando ou procurando trabalho. Recentemente, foi comparado o segundo trimestre de 2020 a igual período de 2019.

"No Ceará, a taxa dos homens foi de 65,7 pontos percentuais em 2019 para 57,4 em 2020. Esse número caiu 8,3 pontos. No caso das mulheres, o número foi de 47,7 para 38,9, com uma queda de 8,8 pontos. Nota-se que mesmo antes da pandemia, a maioria das mulheres do Ceará já estava fora do mercado de trabalho. Menos de 50% estava no mercado, e caiu ainda mais que os homens", observa.

Mães de família

Já para as mulheres com crianças de até 10 anos, especificamente, a taxa chega a um nível um pouco mais alto. Contudo, a queda é maior. O grupo foi de 50,3 pontos percentuais, no ano passado, e reduziu para 40,8 em 2020, o que representa uma queda de 9,5.

"Na pesquisa que nós utilizamos para fazer isso, que é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, a taxa atual das mulheres é a menor da série histórica. Desde 2012, que foi quando começamos essa série, não tem nenhuma taxa menor do que essa, no caso do Ceará", ressalta Hecksher.

Segundo ele, as mulheres sempre tiveram uma taxa de participação menor que a dos homens, mas, ao longo dos anos, vinha sendo observada uma lenta convergência. "Ia ficando cada vez menos distante. Só que a pandemia foi um golpe no sentido contrário, porque ela fez cair ambas as taxas, mas caiu mais a das mulheres. A diferença ficou maior ainda".

Foi, também, depois de março que Maria Lucimar Ferreira, de 40 anos, viu desaparecer a estabilidade com a qual havia se acostumado. Ela trabalhava como empregada doméstica em Fortaleza, mas seus serviços foram dispensados logo no começo de abril. Nessa época, ela já convivia com sintomas da Covid-19.

"Eu fiquei em casa a partir de 19 de março, pra não ter contato. Aí a família pra quem eu trabalhava disse que não ia mais dar certo, porque não tinham condições de me pagar", lembra Maria.

Em casa, ela passou dias isolada em seu quarto para evitar que o filho Railson, 17, e a filha Raniele, 20, se contaminassem também. Depois, a preocupação voltou-se inteiramente ao sustento. "Eu consegui o auxílio, só que antes eu estava me virando fazendo outras coisas, vendendo em casa, fazendo bolo, salgado, essas coisas que a gente tem que inventar", diz.

Agora, ela parou as vendas para se dedicar a um trabalho temporário, substituindo uma colega que está de licença-maternidade. O serviço, porém, só iria até 16 de outubro. "Ainda tenho algumas parcelas do auxílio pra receber, e também sei fazer unha, estou com duas faxinas para fazer nos fins de semana. Eu 'tô' me virando, só não quero ficar parada", afirma.

arte empregos

Proposta

A impossibilidade de "parar" faz parte de um ciclo gerado pela própria pandemia, como avalia a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Cristiane Aquino, doutora em Direitos Fundamentais. Ela reforça o fato de que a situação de crise fragiliza os direitos das pessoas que já estão em desvantagem no mercado de trabalho, ampliando as disparidades sociais.

"Eu acredito que exista, sim, uma influência do machismo. Há muitas diferenças culturais, de um local para outro, em termos da concepção do papel da mulher na sociedade. Então eu creio que no Nordeste, e no Ceará, especificamente, isso talvez aconteça de forma mais notável. Embora o machismo exista em todos os lugares, em maior ou menor grau", pondera.

Aquino enfatiza que o empreendedorismo tem crescido entre as mulheres como uma forma de viabilizar a inserção laboral, em paralelo ao "contexto formal" que geralmente descrimina. "É uma alternativa. E muitas vezes elas se apoiam e se ajudam nesse meio autônomo", pontua.

É novamente o caso de Zenilde. Com as filhas-netas em casa, sem aulas presenciais no colégio e na faculdade, algumas despesas aumentaram, e a depiladora precisou buscar outros caminhos. "Como eu mexo com bolo e essas coisas, pensei que o jeito era começar dessa maneira. Há duas semanas eu montei uma banca em frente à casa da minha mãe e comecei a vender. É bolo e torta de frango. No primeiro dia não rendeu muito, porque não tinha como eu divulgar. Mas no domingo vou montar de novo, de 10h30 até 18h. É só nos fins de semana", planeja a nova empreendedora.

Nos demais dias, ela se dedica aos cuidados da própria mãe, de 89 anos, que já não consegue andar devido às complicações de saúde. No pouco tempo livre que resta, Zenilde atende antigas clientes em domicílio, como forma de complementar a renda; e ainda se prepara para novas possibilidades de trabalho de forma autônoma. "Como minhas irmãs me deram muitas roupas, vou poder montar um bazar. Precisa de muita força e fé. Tem hora que eu penso que não vou aguentar mais. Mas eu vou conseguir, se Deus quiser", compartilha.

Aposta

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada tem feito uma proposta para melhorar a situação para o grupo mais prejudicado. Trata-se de exonerar as jornadas de trabalho mais curtas. "O Congresso agora está discutindo se vai estender uma exoneração que torna mais barato contratar pessoas de 17 setores da economia", explica Hecksher.

O pesquisador aponta como proposta "manter essa exoneração, esse desconto, para quem já está contratado. A empresa não vai ter nenhum aumento de carga com um trabalhador que já está contratado". Assim, para o novo empregado, a partir dessa medida, a exoneração seria para todos os setores, só que concentrada em contratações que fossem de até 36 horas de trabalho semanais. No caso de contratações de até 20 horas, ficaria zerada a contribuição da empresa para a previdência do trabalhador.

A ideia proposta pelo Ipea é de tornar mais barato para a empresa contratar duas pessoas por 20 horas semanais, ao invés de contratar um único funcionário para trabalhar 40 horas. "Assim, o empregador vai ter vantagem em contratar mais pessoas, dividindo as horas entre elas, e quem mais vai se beneficiar disso são as mulheres, porque elas já são as que mais utilizam jornada parcial frequentemente. Todo mundo que está desempregado poderia se beneficiar, mas as mulheres poderiam ser mais beneficiadas", avalia o pesquisador.

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