Pais e entidades reforçam relevância de escolas regulares na inclusão

Decreto do Governo Federal, do início de outubro, reacendeu o debate sobre o modelo de inclusão na educação especial. Instituições argumentam que norma pode colocar em prática uma política separatista

Escrito por Felipe Mesquita/Thatiany Nascimento , metro@svm.com.br
Legenda: Na rede pública do Ceará estão matriculados 7.437 alunos da educação especial
Foto: Foto: Rodrigo Gadelha

"Quando o João entrou, as crianças não estranharam o João. Comecei a ver meu filho entrando na sala de aula feliz e serelepe. Me deu orgulho a autonomia que ele se sentia no colégio". A sensação é relatada pela advogada Janielle Fernandes, mãe de João Lucas, de 7 anos. A criança tem autismo em grau classificado de moderado a grave. Estuda no 2º ano do ensino fundamental na rede privada em Fortaleza. Para ela, assim como centenas de outras mães e pais, garantir que o filho, público-alvo da educação especial, estude em uma escola regular é direito e não pode ser negligenciado.

No início do mês, o Decreto 10.512/2020, publicado pelo Governo Federal, reavivou a discussão sobre as escolas especializadas e as unidades regulares. A norma que, segundo entidades como as defensorias públicas e aquelas representativas das pessoas com deficiência, é questionada no Supremo Tribunal Federal (STF). O assunto é complexo e, no Ceará, pais e instituições argumentam que essas escolas ou classes podem existir, mas não devem ser o foco absoluto da educação inclusiva sob pena de que as políticas nessa área retrocedam.

João Lucas, conta a mãe, aos 7 anos, está no terceiro colégio. Até encontrar uma escola cuja inclusão seja uma prática, o percurso foi longo. "O que eles dizem é que seu filho não vai se adequar. Dizem 'nós não trabalhamos com material adaptado'", relembra Janielle. Na busca por escolas regulares que aceitem os estudantes da educação especial - alunos com deficiência, com transtornos globais do desenvolvimento (como autismo) e com altas habilidades ou superdotação - , há "muita resistência" reforça ela. Mas, o desafio não a impede de reafirmar o ingresso na escola regular como a melhor chance para João e para os demais. "A socialização (nas escolas regulares) não acontece só para a pessoa com deficiência. Com quantas autistas você estudou? Com quantos deficientes físicos? Quando você determina um espaço exclusivo, você coloca as pessoas com deficiência na marginalidade. Quando você não tem contato com o que é diferente, vem um filho com deficiência, e você vê as famílias se desfazerem porque não têm contato com o desconhecido. Isso é falta de conhecimento. Se os estudantes tiveram oportunidade de conviver com a diferença, no futuro, eles vão saber lidar", opina.

Janielle enfatiza que, ela é contra o decreto, mas isso não é "ser contra a escola especializada", pois, afirma, há crianças e adolescentes que demandam atendimento nesse tipo de instituição. No entanto, ressalta, "as escolas e salas especializadas são necessárias em algumas situações". O grande problema do decreto, explica ela, " é que ele só poderia regular a lei e entendemos que foi além da regulamentação. Pecou pela omissão. Deixou de falar nos mecanismos de inclusão da escola regular".

Ela explica que a norma, estabelecida pelo Governo Federal sem discussão com as entidades envolvidas no assunto, "parece ter criado uma brecha que está sendo utilizada pelas escolas" para se desobrigar da oferta da estrutura adequada para os alunos da educação especial nas unidades regulares.

Experiência

A técnica administrativa, Eliane Carlos de Oliveira, mãe de Raíssa, de 12 anos, também aluna da educação especial em uma escola regular, opina que não viu uma "segregação no texto do decreto" e ressalta que é fundamental garantir a existência das escolas especializadas. Mas, afirma que a filha sempre foi matriculada em unidades regulares. Raíssa, conta ela, teve uma lesão cerebral e para se locomover usa um andador e cadeira de rodas em distâncias longas. A adolescente está no 6º ano do ensino fundamental e também tem baixa audição.

"Eu fui sempre buscando uma conversa aberta com a coordenação da escola. Tenho experiência em uma das escolas com a inclusão praticada. E ela (Raíssa), conforme a lei, passa de ano para ano. É importante a convivência com colegas de sala da mesma faixa etária", explica a mãe. Raíssa demanda adaptações nos processos de ensino e avaliação. De acordo com a mãe, é necessário que os conteúdos das disciplinas sejam reduzidos "e a forma como é cobrado precisa ser diferente dos colegas", acrescenta. Na escola em que Raíssa estuda, há alunos que fazem provas orais e outros que sequer fazem provas formais. "Eles são avaliados no decorrer das etapas", explica Eliane ao mencionar que no processo de inclusão é preciso considerar as característica de cada aluno.

No Ceará, a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) reforça em nota que, "a cada ano, observamos que mais alunos público-alvo da educação especial alcançam o Ensino Médio promovendo a expansão da matrícula inclusiva nas escolas regulares".Das 728 escolas da rede estadual, conforme a Seduc, em 651 há alunos da educação especial incluídos nas turmas regulares. Atualmente, são 7.437 alunos da educação especial que estão matriculados.

Em relação às escolas exclusivas, a rede estadual tem duas. Uma com 68 alunos cegos e outra com 199 estudantes surdos, informa a Seduc.

Já a rede pública de Fortaleza, tem, segundo a Secretaria Municipal de Educação, 582 unidades escolares, entre escolas, Centros de Educação Infantil e creches parceiras e os alunos da educação especial podem ser matriculados em qualquer um desses equipamentos. Hoje, a Capital tem 8.564 estudantes com deficiência matriculados. O município também mantém convênio com sete instituições que ofertam o atendimento especializado aos alunos. Para a professora e pesquisadora de ensino inclusivo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC), Adriana Limaverde, o decreto do governo federal impõe uma política segregacionista. "Na forma como ele foi apresentado, traz a possibilidade de as crianças serem excluídas, segregadas, coisas que a gente já venceu há muito tempo", avalia, complementando que o Brasil é signatário em inúmeros documentos que orientam para a inclusão pedagógica, como a própria Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

Retrocesso

"É um dos maiores retrocessos de todas essas conquistas. A Constituição garante o direito à escolarização nos espaços não-segregados. Esse decreto, então, vem exatamente abrir essa possibilidade para que instituições especializadas e espaços separados voltem a oferecer a escolarização", argumenta. Para ela, o maior risco de haver uma separação é a negação do direito dos estudantes aprender com seus pares, com crianças da mesma idade. "No momento em que ele está em espaços segregados, não é estimulado e desafiado a aprender como ele seria em uma escola comum. É preciso dizer que essas crianças aprendem, mas o modo como elas acessam o conhecimento é diferente por causa de suas deficiências", afirma.

Em nota, a presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp), Marisa Irene Siqueira, também evidencia que a diversidade e a vivência da igualdade de direitos, frutos da inclusão escolar, trazem igualdade de oportunidades para as diferentes necessidades educacionais. "Entendemos que a política pedagógica democrática deve promover a inclusão, valorando as diferenças em favorecimento de uma educação para todos, colocando no centro a visão e a ação nas pessoas que aprendem", diz a nota.

Entidades repudiam decreto; norma é alvo de ação judicial

O Decreto Federal 10.512/2020 é questionado na Justiça e, no início desta semana, a Defensoria Pública do Ceará, mesmo não tendo inicialmente parte no processo, pediu o ingresso na ação que tramita no Supremo Tribunal Federal. Defensorias de outros estados (São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro, Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Tocantins) e do Distrito Federal tiveram a mesma iniciativa. As instituições contestam a norma e afirmam que a mesma viola a Constituição Federal e, dentre outros tratados, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

"O decreto, no tocante a fomentação das escolas especiais e salas especiais, vai contra uma política de inclusão. Uma política que ocorre há anos. Estamos retroagindo há 40 anos com a possibilidade de segregação dos alunos com deficiência", afirma a defensora pública do Ceará, Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria. Ela acrescenta "a Constituição é muito clara quando ela diz que a pessoa com deficiência deve frequentar o ensino regular. Há a necessidade de inclusão na rede regular. Essa norma vai contra a legislação federal e os tratados de direito internacional que o Brasil é signatário".

A defensora reconhece que, no dia a dia, a inclusão nas escolas regulares tem obstáculos e algumas queixas chegam à Defensoria. Mas relata que na rede pública (tanto no Estado como no município de Fortaleza), as gestões têm reconhecido a obrigação de garantir a inclusão ao se depararem com as cobranças. "Quando a gente consolida a perspectiva de obrigatoriedade (para o Estado) vem um decreto e mexe com esse avanço", destaca Mariana.

O Ministério Público do Estado do Ceará também já havia se manifestado em relação ao novo decreto. A instituição, em nota pública, ressalta que a norma "representa um grande retrocesso em relação aos avanços na Educação Inclusiva e resulta na desconstrução da política de inclusão escolar". Conforme o MP o texto é discriminatório, pois, incentiva a separação de alunos com deficiência e destaca escolas e salas especializadas, contrariando as normas constitucionais e legais.

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