Natal de pessoas em situação de rua: mesa vazia, coração cheio
Na época do ano em que mais se fala sobre união, doação e amor ao próximo, quem não tem teto, nem companhia, se apega à espera pelo espírito natalino do outro - que nem sempre vem
Ali, no encontro das ruas Waldemar de Alcântara e Luís Girão, no bairro Cidade dos Funcionários, vive Jesus. Fazendo milagre, multiplicando o pouco que tem e sobrevivendo de esperança, um dia após o outro. Jesus mora na rua, num barraco sem porta construído com madeira, lonas e pedaços de tecido reaproveitados. "Só e Deus". Quando ladrões e outros sem teto crucificam o sossego do sono - ou quando chove de madrugada e os ratos saem do matagal vizinho para tentar mordê-lo, com as muriçocas completando o serviço -, Jesus faz vigília.
"Mas é bom, o cantim. E no Natal é melhor ainda, porque o pessoal me dá é muita coisa", contenta-se. Na noite de ceia, porém, só o coração é cheio - na mesa, impera o vazio. De alimento e de companhia. Para Jesus Maciel da Silva, que vive em situação de rua há 14 dos 69 anos, desde quando rompeu os vínculos familiares e adotou as calçadas como lar, impera a solidão. O tom de gratidão pelo que tem, apesar disso, é constante.
A maior dificuldade que eu já passei na vida foi no começo, que eu não tinha barraca e passava a noite todinha levando chuva debaixo dum pé de pau.
Aos poucos, com a ajuda de estranhos, conseguiu material para montar a barraca onde mora hoje, que "é mesmo que um apartamento".
No aposento de um vão só, que toma três metros de calçada por trás da Central de Distribuição dos Correios de Fortaleza, os baldes de tinta guardam a água que consegue nos prédios vizinhos ou com a própria chuva; as vasilhas de plástico acondicionam a ração dos três cachorros, Toinha, Leda e Ceará; e as malas velhas que ganhou de benfeitores protegem da chuva e da poeira as roupas e calçados, igualmente doados.
Casa
Na cerca ao lado da barraca, no mesmo ponto onde deveria ficar a porta, está fixada uma ironia: "Minha Casa, Minha Vida". O único "lar doce lar" possível.
"Não sei quando vou sair daqui, quem sabe é Deus. Na última vez que eu fui atrás dessas casas do governo, entraram aqui e levaram roupa, calçado, meu radim e minhas redes. Tive foi prejuízo, não quero mais saber disso não", irrita-se Jesus, dizendo estar habituado à casa que construiu - onde dorme às 19h e acorda às 4h, cozinha no fogareiro improvisado, se penteia no espelho reciclado, se arruma de bermuda, camisa social e sapatênis; guarda os relógios e óculos "de marca" que ganhou e pendura na parede a foto que tem com o cãozinho Ceará, publicada em uma matéria de jornal.
Fé
Como quebra da rotina que já se desenha ali desde fevereiro de 2017, faça sol ou faça sol - porque na chuva já é outra história, não tem fogareiro que acenda, não tem água que conheça os limites de onde não deve entrar -, o ex-garçom ainda recebe visita dos irmãos, que até têm casas em outros bairros, mas conflitos demais para abrigar a leveza e o bom humor resilientes da figura singular que é Jesus.
"Já sofri tanto, mas é por isso que eu tenho força na minha vida. O pessoal se admira e diz 'Jesus, mas você não se maldiz'... Mas contra a vida, há esperança. Quem espera por Deus um dia alcança. Eu num me desespero não", afirma, com naturalidade e uma confiança inabalável no xará - sentimento que ergue o corpo e o chapéu da cabeça, em gesto de reverência, todos os dias. É por Jesus, o Cristo, que a fé de Maciel se renova, reduzindo as tantas necessidades a sonhos tão simples.
"Eu tenho um sonho de ter um botijãozim de gás, pra fazer minha comida no fogão que eu ganhei; sonho em ganhar um radinho pra ouvir o programa do Paulo Oliveira e os bastidores policiais; e em ter uma companheira pra passar o Natal ano que vem mais eu", sorri, pendurando no cós da bermuda, como amuletos, os chaveiros - sem chaves - das duas imagens que o auxiliam a rezar todo dia: Maria e José, os pais de Cristo.