Na pandemia, cresce desistência dos alunos de cursinhos populares candidatos ao Enem no CE

As iniciativas que atendem estudantes de baixa renda no Ceará tiveram, na crise sanitária, aumento do abandono de quem se preparava para o Exame e ampliação das dificuldades financeiras para manter as atividades

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
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Legenda: Cursinho da Região Metropolitana usava escolas públicas como sede paras as aulas presenciais
Foto: Camila Lima

No começo eram cerca de 50 alunos, hoje, sete permanecem ativos na turma do cursinho popular em Maracanaú. Em Fortaleza, em um curso preparatório com dinâmica semelhante, que acolhe alunos de baixa renda, dos cerca de 250 estudantes no início de 2020, apenas 30 continuam acompanhando as atividades. Em Juazeiro do Norte, apesar de a desistência ter sido menor, da turma que iniciou com cerca de 50 alunos, 40 devem fazer a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

No decorrer da pandemia, os obstáculos têm se ampliado para quem se prepara e tenta ingressar na universidade. A poucos dias das provas, apesar da continuidade da oferta de aulas de forma remota nos cursinhos populares, um dos possíveis efeitos nesta edição do Enem, é que ocorra uma redução do número de candidatos de baixa renda, devido ao abandono da preparação.

Em Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza, antes da pandemia, as aulas do Projeto 6 de Março ocorreram por duas semanas de forma presencial. A iniciativa ocorre no bairro Jereissati I e é um curso de extensão da Universidade Federal do Ceará (UFC), que prepara os estudantes oriundos de escolas públicas de Maracanaú que concluíram o Ensino Médio ou aqueles que vão cursar o 3º ano na rede pública. A média, relata a professora e coordenadora do projeto, Kathleen Barros, é de 40 a 50 alunos a cada ano, que, quase sempre não chegam a concluir a preparação para o Enem.

Contudo, em 2020, relata ela, a desistência foi bem mais intensa que em anos anteriores. Hoje, entre 5 e 7 alunos permanecem na formação rumo à prova que pode assegurar o acesso ao ensino superior. "Muita gente desistiu do processo seletivo dos vestibulares. É muito difícil. Dos 50 alunos, poucos ficaram. O impacto foi muito forte em relação à quantidade de alunos e também houve muito mais impacto psicológico. Muita gente não teve condições de continuar", destaca ela.

As aulas que ocorriam de modo presencial nas escolas José Martins Rodrigues - na semana - e na Professor Antônio Martins Filho - no fim de semana -, foram substituídas pelas formações remotas. Com isso, a taxa mensal de R$ 25,00 para a manutenção do cursinho também foi abolida. "Como na pandemia não gastamos com manutenção, a gente não cobrou mensalidade", completa. Apesar da baixa no número de alunos, as formações tiveram continuidade e, conforme Kathleen, eles seguem sendo incentivados e capacitados para tentar o Enem.

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Legenda: As aulas do Projeto 6 de Março, em Maracanaú, ocorreram por duas semanas de forma presencial.

Problemas

Em Fortaleza, no bairro Benfica, as aulas presenciais do Projeto Novo Vestibular (PNV), projeto de extensão da UFC cujo Departamento de História é o responsável, foram também substituídas pela formação remota. No cursinho popular, explica a coordenadora articuladora e graduanda em História, Janaiane Maciel Soares, o público - alunos e egressos de escolas públicas - é aquele que "realmente precisa de acompanhamento". São também pessoas de baixa renda e de todas as idades. "Temos alunos idosos, pessoas que confiam no trabalho", acrescenta.

Dos alunos é cobrado apenas o material didático, cujo custo era, em 2020, do primeiro módulo R$ 140, e o valor ia diminuindo até o último que iria custar R$ 90. "Com a pandemia, nós ficamos mais vulneráveis porque não pudemos mais vender material. Passamos a trabalhar sem bolsa no segundo mês da pandemia. No PNV a gente continuou com as turmas matriculadas no início do ano passado. Nos reorganizamos no modo intensivo e ficamos oferecendo material online sem custo", conta Janaiane.

Se foi difícil manter os alunos, que saíram de 250 para 30, também não tem sido fácil garantir a motivação dos professores, que precisam do pagamento, mas na pandemia não o tem assegurado. Das 25 bolsas, 24 são custeadas pelas atividades do PNV, diz Janaiane, e uma delas é financiada pela UFC. "É uma situação muito triste que, infelizmente, depois de vários e vários planejamentos, ainda não vemos um futuro muito certo pela frente. Na pandemia, fizemos uma campanha para poder tentar driblar os problemas financeiros. Esse ano nós vamos precisar fazer mais campanhas".

Embora discordem da ocorrência do Enem, no atual momento, em meio ao alto número de contaminações por Covid no País, Janaiane garante que os integrantes do PNV seguem preparando os alunos para a prova. "Mesmo que o ano já tenha acabado, o trabalho voluntário continua. O cursinho está com uma turma. Vamos fazer, apesar de não concordarmos com a realização, uma preparação que nossos alunos se sintam mais seguros. Tudo isso pesou muito, tanto no psicológico, como na performance dos nossos professores e alunos".

Já em Juazeiro do Norte, o Cursinho Edificar, projeto de extensão da Universidade Federal do Cariri (UFCA), embora também tenha registrado desistências na participação no Enem, em paralelo, notou que a ocorrência de aulas remotas possibilitou o aumento do número de participantes, não mais realizadas em pequenas salas físicas.

Um dos coordenadores do cursinho, o estudante de Engenharia de Materiais da UFCA, Lucas Clever, conta que a iniciativa preparatória existe desde 2016, e a cada ano, através de uma prova, são selecionados entre 50 e 60 alunos para o cursinho, cujas aulas são ministradas por professores voluntários da UFCA, da Universidade Regional do Cariri (URCA) e de instituições particulares da região.

"Em 2020 nossas aulas estavam previstas para começar em maio. Tínhamos na faixa de 50 e 60 alunos, com cerca de 400 pessoas fazendo a prova. Quando a gente ia começar, a UFCA proferiu um documento dizendo que as aulas deveriam paralisar até junho. Mas chegou junho e não conseguimos e decidimos iniciar de forma remota", relata.

Nas aulas virtuais, do cursinho que é totalmente gratuito para os alunos, foi possível incluir até 170 estudantes. "Com o passar do tempo, as principais dificuldades foram: acesso à internet e cansaço emocional para o Enem. Até mesmo os professores estavam cansados de dar aula de forma remota. Vários alunos desistiram. Não conseguiam acompanhar porque precisavam trabalhar", reforça. Do total de matriculados oficialmente, Lucas estima que 40 devem fazer o Enem.

Estratégia

No Ceará, há, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 325.706 candidatos inscritos no Enem. E nessa preparação, o professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará, Ruy de Deus e Mello Neto, avalia que os cursinhos populares passam por uma situação "extremamente delicada em função da pandemia".

De acordo com ele, se por um lado eles são submetidos a problemas semelhantes ao das escolas públicas regulares, como a falta de acesso às aulas virtuais e o aumento da evasão, o problema de financiamento é um agravante. "Em geral, os cursinhos trabalham com orçamentos do terceiro setor ou mesmo com contribuições simbólicas dos estudantes, estas que se tornaram escassas com o agravamento da crise sanitária e, consequentemente, com o adensamento da crise na economia. A situação se torna ainda pior quando consideramos que boa parte destes cursos não contam com uma estrutura física que os permita investir em aulas virtuais", reforça o professor.

Para 2021, o caminho possível, conforme Ruy, "vai depender muito da realidade do cursinho em questão". O professor exemplifica "aqueles mais centrados em regiões pequenas, com um público alvo específico, podem passar a optar por turmas menores com cuidados protocolares adequados ao contexto da pandemia. Outros, com mais estrutura física, podem pensar em garantir um maior alcance pela manutenção das aulas virtuais".

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