Isolamento: por que ver o mar e os amigos supera o medo da Covid-19
Com a pandemia ativa, fortalezenses se dividem: há quem ficou só algumas semanas em casa, quem saiu após quatro meses de “quarentena”, e quem permaneça isolado; volta às ruas expõe limite entre saúdes física e mental
Com a reabertura de boa parte das atividades em Fortaleza, a população tem ocupado, cada dia mais, os espaços públicos. A retomada da rotina é necessária à saúde mental, mas requer cuidados e responsabilidade para evitar prolongamento da pandemia. Ainda hoje, contudo, fortalezenses se dividem e até conflitam: há quem defenda a permanência em casa, mesmo com a flexibilização das atividades; e há quem saia “em nome da saúde mental”.
O Ceará nunca atingiu a taxa de isolamento social ideal para o contexto pandêmico, que seria de 70%, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) – ficamos, no máximo, na faixa dos 60%. Já agora, entre 1º e 23 de julho, de acordo com dados de geolocalização da In Loco, a média diária de cearenses que permanecem isolados é de 42%. Em Fortaleza, a porcentagem é a mesma, com mínima de 39% (numa sexta-feira) e máxima de 49% (num domingo).
É aos domingos, contudo, que são vistas as maiores movimentações na Capital. No último (26), a Avenida Beira Mar registrou longo engarrafamento, sob a luz dourada do pôr-do-sol, congestionamento que não se restringia aos veículos: calçadão, faixa de areia e espigões ficaram tomados por pedestres e ciclistas, grande parte sem distanciamento mínimo nem máscara de proteção. Em praças como a Luíza Távora, na Aldeota, por exemplo, o cenário se repete.
O desrespeito às regras sanitárias básicas gera temor até em quem optou por “relaxar” o isolamento. Após cerca de 100 dias em casa, convivendo com ansiedade e insônia, a assistente de compras Isabela Romão, 26, escolheu a Praia de Tabuba, em Caucaia, como primeiro destino não-essencial em meio à pandemia, no dia 5 deste mês. “Fui tomar um sol, pegar um vento, botar os pés na água. Ver a luz sem ser pela janela. Tava muito deprimida em casa, porque fui uma das privilegiadas que pôde se isolar desde o início”, pontua.
Numa segunda tentativa, porém, numa praia da Capital, relaxar não foi bem o verbo. “Tava superlotada, não tinha como haver distanciamento. E me sinto muito insegura quando tô na rua e vejo alguém sem máscara, fico morrendo de medo quando tem muita gente no local. Até no supermercado também, com filas enormes. Fico muito assustada como o mundo mudou tão rápido. Por mais que eu tenha afrouxado um pouco o isolamento, nada tá como antes”, lamenta.
Retorno
Se para Isabela a mínima segurança para conseguir sair de casa veio após quase cinco meses, para a estudante de Nutrição Mirna Sales, 27, nunca foi uma questão. A falta de ir aos treinos na academia e, sobretudo, de ver os amigos a fez sair de casa após curtas três semanas de isolamento. “Senti muita falta da possibilidade de ir e vir, sem ser obrigada a ficar em casa. Só me afastei dos amigos, não me isolei da família. Cheguei a viajar à praia, mas não postava nada nas redes sociais, porque as pessoas denunciavam, julgavam. Mas isso não me abalava, nem quem julga faz tudo certinho”, dispara.
O uso de máscara de proteção na volta às ruas, segundo Mirna, só é seguido para respeitar as outras pessoas, e não por necessidade pessoal. “Quando fiquei isolada, tentei me manter sempre ativa. Toda vida que eu parava, começava a ficar triste. Tive momentos de ficar muito abalada, sentindo falta dos amigos. Eu chorava. Uma coisa é você ter uma rotina com pessoas ao seu lado, outra é sozinha. Mas fui trabalhando a minha cabeça de que isso uma hora ia acabar, e acabou”, aponta a estudante, que voltou oficialmente aos treinos físicos, agora que academias têm funcionamento permitido.
Ao contrário de ambas, o estudante de Direito Caio Bernardo, 21, permanece em isolamento, saindo apenas para serviços essenciais – e a contragosto. “Ir nesses espaços tem gerado sentimentos que eu nunca imaginei que teria. Sempre gostei muito de estar em contato com as pessoas, e ter contato hoje em dia me deixa inseguro, em pânico, até. Será que a pessoa tá com o vírus? Será que eu posso ter infectado essa pessoa? Sair tem me deixado em conflito”, confessa.
Apesar de reconhecer os impactos da pandemia à saúde emocional e a necessidade de estratégias para manter o autocuidado, Caio opina que é preciso, acima de tudo, “responsabilidade”. “Usar do argumento de saúde mental para quebrar regras, infringir leis, porque ‘está precisando’, é muito egoísta. Não existe uma necessidade maior que possa suprir as necessidades coletivas. Alguns amigos estavam aglomerados em casas de praia, com desconhecidos, por exemplo. Não é a mesma coisa de quem seguiu a quarentena por longos meses e agora volta à rotina com responsabilidade.”
A psicóloga Mariana Kolb explica que o cansaço do isolamento e a sensação de saber como lidar com a pandemia minimizam o medo de contrair a doença. Contudo, manter os cuidados é indispensável. “Tem sido muito estimulado que as pessoas encontrem seus momentos de autocuidado, e precisamos, sim, cuidar do aspecto emocional, para não termos consequências bem danosas. Mas precisamos ser cautelosos, e não ter isso como justificativa para tomarmos atitudes insensatas. A pandemia não está sob controle ainda, as condutas precisam ser coletivas”, pontua.
A flexibilização, segundo ela, é uma forma de retomada gradual “da rotina e do viver”, mas receio de retornar às ruas são tão naturais quanto a vontade de ocupá-las. “A primeira coisa crucial é: respeite o seu tempo. Nada de se comparar. Não é porque o outro saiu que você também precisa. Cada um tem seu tempo físico e emocional.”
Respeito
A necessidade de manter o respeito à individualidade e atentar à influência das ações do outro sobre si é reforçado pelo psicólogo Raymundo Neto. “Será que posso sair sabendo que há pessoas que decidiram não sair? Pra que saio de casa: pra publicar fotos ou porque há uma necessidade pessoal? É importante que façamos nossas escolhas com responsabilidade. Quem está em casa também as fez: muitas vezes o medo de pegar a doença é maior do que a vontade de sair, e as pessoas arcam com as consequências dessas escolhas”, conclui.
Para Keny Colares, infectologista do Hospital São José (HSJ), a população tem reagido “de forma descontrolada” ao processo de reabertura. “Os riscos que existem são de retorno do aumento do número de casos da Covid-19, e de então, ao invés de termos um processo de abertura progressiva das atividades, termos uma regressão: atividades voltarem a ser bloqueadas. Tem acontecido em outros países”, exemplifica.
O uso correto da máscara de proteção e a manutenção do distanciamento físico em ambientes abertos, como praias e praças, conforme Keny, reduzem os riscos de infecção pelo coronavírus: mas é preciso atenção para combinar sempre ambas as medidas. “O problema é que nem sempre há distanciamento nesses locais. Vai ser mais cansativo e estressante se as pessoas quiserem acelerar demais essa volta à rotina. O preço vai sair alto demais pra todo mundo.”