Há 87 anos, campo de concentração em Fortaleza foi atração para visitantes de outros estados

Uma comitiva, composta por jornalistas e famílias excursionistas, vindas do Sul foi apresentada a um “mostruário dos efeitos da seca” no Campo do Urubu, no Pirambu

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@diariodonordeste.com.br
Legenda: Campo de Concentração do Pirambu, em 1932, imagem do médico José Bonifácio Paranhos Costa no relatório da Comissão Médica de Assistência e Profilaxia aos Flagelados do Nordeste. Acervo: Valdecy Alves

Visitar uma cidade, buscar os lugares mais atrativos e ser conduzido a uma espécie de campo aprisionamento de pessoas. Foi esta situação vivida há 87 anos em Fortaleza por um grupo de brasileiros advindos do Sul do país. A comitiva, em junho de 1932, percorria Fortaleza em um dos primeiros grandes cruzeiros interestadual vindo da Sul para o Nordeste, quando foi levada por figuras públicas a um dos campos de concentração de retirantes da seca que existiu em Fortaleza, na década de 1930. 

O grupo, composto por jornalistas e famílias excursionistas, foi apresentada a um “mostruário dos efeitos da seca”, conforme noticiou a imprensa da época. Os visitantes estavam de passagem pela Capital em uma viagem que percorreria outras importantes cidades do país. Um dos “atrativos” da visita foi o Campo de Concentração do Uburu, na atual área do Pirambu. 


 

O cruzeiro no Navio Almirante Jaceguai, da Cia. de Navegação Lloyd Brasileiro, do Rio de Janeiro, teve início no Rio Grande do Sul e percorreu portos do Nordeste. No dia 14 de junho de 1932, ancorou em Fortaleza. O destino final era Manaus. Durante os dias 14 e 16 de junho de 1932 a excursão foi acompanhada pela imprensa cearense. 

Na visita ao Pirambu, os turistas deixaram cinco contos de réis em benefício dos flagelados expostos e encurralados pelas cercas e vigiados, registrou a imprensa da época. A miséria era o espetáculo e os dilemas do Ceará, que passava por um ciclo de seca intensa, era apreciado sob o discurso do exercício da caridade da população do Sul do país.

O livro “Isolamento e poder Fortaleza e os campos de concentração na seca de 1932”, da professora do Departamento de História da Universidade (UFC), Kênia Rios, também registra o episódio.

Segundo a autora do livro "é plausível considerar que a visita ao Campo de Concentração reavivaria a memória dos turistas sobre o flagelo que assolava o resto do Estado e que também chegava à Capital. Era importante não ocultar totalmente aos visitantes os horrores da seca. Afinal, era a projeção dessa imagem que garantia a vinda mais abundante de recursos financeiros. Aquele mostruário de seca revelava o flagelo de uma forma controlada. A demonstração do flagelo no Campo de Concentração provava aos sulistas a trágica existência da seca, ao mesmo tempo que assegurava a imagem de um bom uso dos recursos enviados pelos ricos do Sul ou pelo Governo Federal", relata a professora na publicação.

Localização atual

As imprecisões quanto à localização dos campos de concentração em Fortaleza perduram. Os registros, embora descrevam as características dos locais, pouco relatam sobre a exatidão do endereço hoje. 

A apuração do Diário do Nordeste, a partir do confronto de registros oficiais, matérias de jornais da época e depoimentos de pesquisadores, estima que o Campo do Urubu localizava-se na vizinhança à Rede de Viação Cearense (RVC), espaço que hoje abriga a sede da Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) na Av. Francisco Sá. O campo era estruturado no terreno nas proximidades no sentido do mar. 

Condições sanitárias

De acordo com o relatório da Comissão Médica de Assistência e Profilaxia aos Flagelados do Nordeste, feito pelo médico José Bonifácio da Costa, apresentado ao diretor geral do Departamento Nacional de Saúde Pública em agosto de 1933, o campo de concentração do Pirambu chegou a abrigar 6 mil pessoas. O  relato do médico registra que "para abrigar a população de flagelados no Pirambú foram construídos grandes galpões cobertos de folha de zinco. No travejamento de madeira e em estacas numerosas eram armadas as redes". 

O documento diz que "foi organizada uma cozinha onde preparavam-se os alimentos. Compreende-se, porém, que a distribuição desse alimento a 6.000 pessoas devia ser execução morosa atendendo ao pequeno número de empregados para isto existentes. O resultado é que, a horas avançadas do dia ainda encontradas muitas pessoas sem alimentação". 

Outro registro é da diversas doenças no local, como diarreia, disenteriforme, gripes e paratifo (doença infecciosa com sintomas semelhantes aos da febre tifoide). No documento o médido argumenta que "além das próprias causas infecciosas essa situação agravava-se nessa ocasião com a luz solar intensa, a abundância das poeiras, o ar quente dos sertões percorridos e com a carência alimentar".