Famílias lidam com dilemas e proveitos de habitar casas centenárias

Em Fortaleza, cidade que batalha para garantir preservação de seu patrimônio, moradores de imóveis cuja data de construção é anterior a 1919 contam a experiência de viver nessas edificações e os dilemas para as conservar

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
casa centenária fortaleza
Legenda: No Monte Castelo, o casarão habitado pela Família Osterno, é datado de 1912
Foto: Fabiane de Paula

Cômodos grandes. Quartos que, na ver- são original, tinham, pelo menos, três por- tas conectando-os com diversos com- partimentos da residência. Corredores largos. Paredes grossas, com janelas de arcos. Banheiros amplos, ainda que poucos. Alpendres. Estética de casas edificadas no século passado. Memórias materiais, que apesar da idade, superior a 90 anos, seguem erguidas e habitadas na cidade, cuja batalha para garantir a preservação de seu patrimônio é difícil e contínua. 

Em Fortaleza, o cadastro imobiliário da Prefeitura – banco de dados público oficial sobre a idade dos imóveis - contabiliza, pelo menos, 268 prédios centenários. Conforme as informações do cadastro, esses imóveis estão localizados em 23 dos 121 bairros da Capital

Edificações ressignificadas, adaptadas às novas necessidades de quem chegou para morar, décadas após esses espaços terem sido habitados pelos primeiros donos. Se Fortaleza tem prédios públicos de reconhecido valor histórico – sobretudo em bairros como Centro, Aldeota, Jacarecanga e Parangaba –, alguns datados ainda do fim dos anos de 1800, em paralelo, mantém verdadeiros patrimônios anônimos que, além de lembranças particulares, resguardam a história coletiva da cidade.

São edificações particulares, principalmente, moradias, que, por meio da arquitetura, localização e modelo, espelham e narram o contexto histórico e social vivenciado em tempos passados. O elo entre os habitantes de imóveis particulares com mais de 90 anos é justamente a percepção de que manter as características desses bens, por um lado, é um legado e, por outro, demanda ações contínuas de trabalho e investimento pelas famílias.

“Quando a gente passou aqui em 2001, essa casa estava abandonada e nós estávamos procurando uma casa para comprar. Ela custou 50 mil reais, mas tivemos que investir outros 60 mil reais para podermos ajeitar”, conta a dona de casa, Eliete da Costa.

A residência, localizada na Rua Oto de Alencar, no Centro, abriga ela e o marido aposentado José Maria Fonseca e, segundo os registros da Prefeitura, existe há, pelo menos, 113 anos. Quem passa pela calçada talvez não tenha a dimensão da riqueza do patrimônio trancado por dois portões de ferro. O muro alto esconde parte da edificação principal, mas, ao mesmo tempo, deixa à mostra o sutil detalhamento das estruturas próximas ao telhado, com elevações no contorno das janelas.

Procura
O imóvel é um “achado”, ressalta Eliete, enquanto apresenta os grandes cômodos da casa. Banheiros grandes. Portas largas. Na residência centenária as histórias da família, que há 18 anos a conserva, se multiplicam. Para viver no local com “ares tão antigos”, o casal, embora tenha optado por preservar quase 80% do modelo, decidiu fazer algumas adaptações. A principal delas, eliminar as portas que interligavam todos os quartos. Segundo Eliete, o modelo tradicional, “comprometia a privacidade nos cômodos”.

No bairro Monte Castelo, o casarão habitado pela Família Osterno, datado de 1912, foi desejado pela matriarca Maria Macêdo Osterno, falecida em 2015, ainda na juventude. “Minha mãe contava que quando era adolescente passava onde hoje é a (avenida) Bezerra de Menezes, que não tinha nada na frente, e dava pra ver o casarão quando ela passava. Ela dizia: ainda vou morar nessa casa”, relata a professora, Tereza Cristina Macêdo Osterno, habitante do imóvel na Rua Soares Bulcão.

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Legenda: Primeiros habitantes de um casarão centenário no bairro Monte Castelo

O casarão centenário, explica ela, foi adquirido pela família em 1974, quando os pais de Tereza Cristina se mudaram para lá. A professora foi criada no imóvel e saiu de lá quando casou. Em 1992, voltou a residir na propriedade. Nesse movimento, todos os irmãos adultos regressaram para o local. 

Manutenção
O patriarca da família construiu, então, uma série de habitações ao redor do imóvel centenário de 18 cômodos. No local, a família preservou um portão de ferro aberto, cuja vista de quem passa pela frente encontra o antigo prédio de grande proporção. Um patrimônio particular exposto à coletividade. “Minha mãe sempre gostou que o casarão fosse visto por quem passa. Tem muita gente que o confunde
com convento, orfanato, igreja. O pessoal até se benze quando passa”, relata.

A manutenção da fachada original é um legado, defendido pela matriarca, lembra Tereza. Hoje, ela acredita que a família tem mais consciência sobre a necessidade de preservá-lo. Por dentro, para garantir o melhor uso do espaço, algumas alterações, sobretudo, de desmembramento de cômodos, foram feitas no decorrer dos anos.

“Fomos modificando porque era característico dos casarões da época enormes salões, enormes quartos, nenhuma suíte, quase não tinha banheiros. Então, era uma divisão da casa muito complicada. Fomos adaptando uma coisa ou outra”, afirma.

Nas proximidades da região, no bairro Jacarecanga, outra habitação centenária passa por dilemas semelhantes, mas nela as modificações são constantes. A casa da Família do Monte, na Avenida Tenente Lisboa, foi comprada em 1950 e tem como data de construção o ano de 1901. A frente do imóvel de 28 metros localiza-se próximo ao trilho que liga Fortaleza a Caucaia.

A edificação centenária hoje tem uso misto. Além de casa, serve também como comércio. O processo de descaracterização do imóvel é bastante acentuado e perceptível. Quando o adquiriram, o aposentado Afonso do Monte, 81 anos e sua esposa, Marilene Lemos do Monte, 77 anos, compraram também terrenos ao redor. Com o tempo, os filhos ergueram as próprias residências nesses espaços.

No modelo tradicional, o imóvel tinha seis cômodos. Desse passado, só restou alguns espaços, mas que ganharam outro uso. A antiga sala, por exemplo, atualmente serve para abrigar material de construção. A família alterou o formato de outras partes da casa e deu um estilo diferente ao prédio. “Quando nós chegamos tinha poucas casas. Do outro lado um terreno muito grande e só uma casa. Hoje, muitos vizinhos já saíram e quem não saiu, já morreu”, conta o idoso.

Garantir preservação, de fato, não é simples, ressalta a Família Frota, moradora da Rua 25 de Março, no Centro de Fortaleza. A habitação é um imóvel que tem cerca de 90 anos e, conforme a família, assegura legados tanto diretamente para os descendentes, como para os desconhecidos. Isto porque o cuidado com o imóvel de muro baixo, acessível ao olhos de qualquer transeunte, é notório.

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Legenda: Interior da casa da Família Frota, no Centro de Fortaleza
Foto: Fabiane de Paula

Pintura, acabamento e modelo preservados ao máximo. Evidências de um patrimônio particular que serve à cidade. É lá que muitos turistas que circulam pela área produzem fotos. Registros da estética e dos cuidados com imóvel que segue rumo ao 100 anos. No interior da habitação, uma escada de madeira, portas em forma de arco e o piso de alguns compartimentos são originais. Nos cômodos a divisão foi mantida. O imóvel, comprado em 1953 pela Família Frota, segundo o assistente administrativo Esdras Olímpio, neto dos compradores, é respeitado. “É só olhar que não tem pichação”, destaca.

Na residência, a dona de casa Viveca Frota de Oliveira, irmã de Esdras, orgulha-se de manter viva a memória das demais gerações, e explica algumas modificações necessárias, como: o aumento da altura do muro do quintal e a abertura e fechamento de algumas portas. Mas, ela assegura o esforço para não descaracterizar a casa. “Sei que tem gente que não valoriza. Mas meu orgulho é grande. Fico feliz com tudo isso aqui que cuidamos”.

> Análise
Manutenção é afetiva, não só econômica

Albio Sales
Arquiteto e doutor em História da Arte

"A ausência de preservação é um contexto geral. No mundo todo só existiu preservação por interesse dos proprietários. Independentemente de serem públicos ou privados. No Brasil,de modo geral, a questão da preservação passa pela dificuldade da diferença entre o que é público e privado. Só recentemente, há três décadas, é que nasce a política de preservação de forma mais organizada. Um movimento pequeno, mas que está mudando. 

Outro elemento é que a parte mais importante de Fortaleza antiga era no Centro e houve uma esvaziamento muito rápido de lá, principalmente da função habitação. Esse esvaziamento
leva à demolição. Porque quando as casas têm o valor mais afetivo, elas se mantêm. Justamente porque não é só uma questão econômica.

Brasil e Fortaleza enfrentam esse problema. De estarmos sempre pensando como uma cidade moderna, como se não tivéssemos um passado e como se a própria modernidade já não fosse história". 

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