Falta de iluminação pública e assédios ainda são obstáculos na mobilidade de mulheres em Fortaleza

Grupos femininos buscam melhora na qualidade da infraestrutura para deslocamentos e mudança cultural para evitar importunações

Escrito por Lucas Falconery , lucas.falconery@svm.com.br
Foto mostra ciclista
Legenda: "Algumas vezes você como mulher, principalmente se estiver pedalando sozinha pela cidade, pode se deparar com alguma situação de assédio", reflete Luisa.
Foto: Acervo Pessoal

“As mulheres se deslocam muito mais do que os homens - para fazer compras e por causa dos cuidados com os filhos - e não existem políticas públicas voltadas exatamente para esse segmento”. A percepção da pesquisadora Ariane Mendes se soma às vozes de outras mulheres sujeitas a obstáculos estruturais, evidenciados na falta de iluminação pública, e culturais, como a importunação sexual, que são desmotivadores da apropriação feminina das ruas de Fortaleza.

Além desses fatores, quem vivencia esse cenário aponta a desigualdade de acesso aos modais como desvantagem para as mulheres, principalmente as de baixa renda. O debate tem seu espaço reforçado na Semana Nacional do Trânsito, celebrada entre os dias 18 e 25 de setembro, como forma de promover reflexões sobre as responsabilidades de todos aqueles que se deslocam pelas cidades.

Em meio aos desafios, a campanha “Caminhos Possíveis”, parte do Laboratório Praia de Iracema (PI) Experimental, é feita por um grupo de mulheres mobilizadas na busca por condições adequadas para o deslocamento a pé em Fortaleza.

Em cinco meses foram feitos encontros e debates com especialistas, além da coleta de dados de pessoas que transitam a pé pela Praia de Iracema. A pergunta “Qual o seu maior medo ao sair na rua?”, feita em formulário virtual, teve como resposta recorrente o risco de assédio e de estupro, como conta a organizadora.

“Nosso foco era tentar entender a vulnerabilidade e as particularidades vivenciadas pelas mulheres. Nós finalizamos a campanha com intervenção artística, com mensagens afirmativas para a caminhabilidade e a ocupação de mulheres nas ruas”, detalha a fundadora do projeto, Ariane Mendes.

Intervenção urbana
Legenda: Mensagens de incentivo aos deslocamentos feitos a pé são distribuídas pelas calçadas da Praia de Iracema
Foto: Acervo PI Experimental

Ariane ressalta a necessidade do planejamento público considerar as particularidades das mulheres para deslocamentos seguros e em condições ideais. “Dá força ver outras mulheres provocando e trazendo à tona esse movimento, especialistas que abraçam a causa da mobilidade, tanto na parte técnica, quanto sociológica. Existem mulheres discutindo isso, mas a pauta precisa de mais incentivo, mais apoio para as iniciativas”.

“O que a gente percebeu é que a iluminação pública poderia resolver o problema da mobilidade e reduzir a insegurança. As pessoas estarem na rua em convivência dá uma maior segurança”
Ariane Mendes
Pesquisadora

Caminhos Possíveis foi um dos 10 projetos selecionados pela iniciativa do Laboratório de Ação Direta para a Mobilidade a Pé (Lab.MaP), que reúne ações de todo o País. Além de Ariane Mendes, Gabriela Queiroz, Laura Cavalcanti, Mara Silveira, Natália Medeiros e Virgínia Sousa compõem o grupo cearense.

Nesta semana, o projeto “Cidade para Mulheres”, desenvolvido pela Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC) deve inaugurar intervenções na Avenida Lineu Machado - em bairros como Jóquei Clube e João XXIII - com nova faixa de pedestres, adequação da iluminação e requalificação do passeio público. O lançamento está previsto para quinta-feira (23).

Denúncias de assédio

Entre janeiro e agosto deste ano foram feitas 105 denúncias de assédio sexual pelo botão virtual “Nina”, ferramenta do aplicativo Meu Ônibus Fortaleza, conforme dados da Fundação de Ciência, Tecnologia e Inovação de Fortaleza (Citinova).

Os registros desse tipo de violência cometida em parada de ônibus, terminais de integração e nos coletivos apresenta queda de 74,6% em comparação com o igual período de 2020, quando foram 414, devido à queda de circulação na pandemia da Covid-19 e pela necessidade de campanhas informativas sobre o botão virtual.

Em oito meses deste ano, foram 65 casos dentro de ônibus, 24 em terminais e 16 denúncias referentes às paradas de espera. A maioria (54.3%) das queixas são feitas pelas próprias vítimas e 45.7% por pessoas que presenciaram cenas de assédio sexual.

“O fato preponderante (para essa redução) foi a pandemia, porque a gente teve uma queda de quase dois terços da demanda por transporte público e a frota foi reduzida. Esse projeto também precisa muito que a campanha de conscientização esteja acontecendo ao mesmo tempo”, explica Victor Macêdo, vice-presidente da Citinova.

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A ferramenta, como explica Victor, foi desenvolvida para ser um elo de comunicação entre passageiros e autoridades de segurança. As imagens dos coletivos, no período de cinco minutos antes e cinco depois do acionamento, são gravadas para serem utilizadas como flagrante.

Para isso deve ser o código do ônibus também deve ser registrado. “Estamos tentando desenvolver uma versão do Nina para ficar nos pontos de parada de maiores índices de violência”, comenta sobre as mudanças no botão Nina.

O programa estava funcionando em caráter piloto, mas deve ser expandido e ter novas funcionalidades, como adianta o vice-presidente. “Também é importante pontuar outras ações que estão sendo feitas no transporte público, com câmeras, redução da circulação de dinheiro (com passe digital), blitzes randômicas e o somatório dessas ações contribui com a segurança”, acrescenta Victor Macêdo.

Relação com a cidade

Situações intimidadoras no caminhar pela cidade fazem parte da vivência de mulheres de idades diferentes e são limitantes do ir e vir, como observa a consultora em mobilidade urbana, Bianca Macêdo.

“A gente está vendo as mulheres ocupando o mercado de trabalho e o espaço público, o que é uma conquista, porém dolorosa porque é acompanhada de assédio”, acrescenta.

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Um deslocamento corriqueiro a pé ou em modais pode ser cenário de comentários desrespeitosos ou gestos mais ofensivos. “Quanto mais olhos tem na rua, mais seguro você se sente porque tem pessoas olhando, mesmo que seja um pedestre do outro lado. Com ruas mais vazias, o que acontece na pandemia, gera uma situação de insegurança maior”.

Tornar o ambiente mais seguro para mulheres pode ser objetivo alcançado no planejamento urbano: vias bem iluminadas e com estrutura adequada reduzem situações de risco.

Bianca Macêdo também destaca a relevância de serviços e protocolos de atendimento para casos de importunação no transporte público. “As mulheres sofrem muito mais nos seus deslocamentos diários com assédios e são mais vítimas de assaltos. Isso faz com que elas queiram sair menos ainda (de casa)”.

A pesquisadora na área de mobilidade e gênero avalia que a promoção de segurança para mulheres deve acontecer não apenas pelo Poder Público, mas também pela quebra de estigmas culturais. “A gente precisa sim de mudanças na infraestrutura dos serviços, mas também de mentalidade: do homem não achar que a mulher está disponível para tratá-la da forma como ele quiser, inclusive, assediando”, detalha.

Em Fortaleza, as mulheres são 22% de quem anda de bicicleta, mas a bicicleta não é um modo de transporte para o homem. Fazer com que a mobilidade seja equitativa vai contribuir com a segurança e mais justiça social em relação às mulheres
Bianca Macêdo
Consultora em mobilidade

Violência no trânsito

Luisa Pinheiro, de 42 anos, abriu mão do carro próprio e entrou para o grupo de ciclistas da cidade desde 2015, como forma de vivenciar a cidade sob uma perspectiva mais sustentável. Da sua experiência, a ciclista acompanha a melhora gradativa de opções para quem busca alternativa aos ônibus em que “hoje em dia a gente consegue se deslocar pela cidade quase inteira em estrutura cicloviária”, observa.

Os obstáculos, no entanto, estão na falta de respeito entre os personagens do trânsito. “O que a maioria das pessoas chama de acidente são, na verdade, violências que poderiam ser evitadas se tivesse o olhar mais humano para entender que as cidades são feitas para as pessoas e não para os carros, motos ou para a pressa”, conclui.

Em dezembro do último ano, Luisa teve de evitar a colisão com um ônibus que foi manobrado de forma errada. Por parar em um trecho sem movimentação da Avenida Antônio Sales, acabou sendo alvo de um assalto. “Eu acho que falta ainda sensibilizar os motoristas, ter uma educação de trânsito que sensibilize para o respeito à vida”. 

Bicicleta
Legenda: Companhia cotidiana pelas ruas de Fortaleza, a bicicleta recebeu o nome de Shirley.
Foto: Acervo Pessoal

Luisa atua no Instituto Doutor José Frota (IJF) como cirurgiã bucomaxilofacial e percebe no seu cotidiano profissional os resultados da falta de educação para o trânsito. “Eu recebo muitos pacientes vítimas de violência no trânsito e tudo que possa ser feito para preservar a integridade física das pessoas deve ser bem feito”. Entre as ações, cita a redução dos limites de velocidade, implementada em algumas vias de Fortaleza.

A iluminação pública precisa ser melhorada em toda a cidade porque até na parte mais abastada tem muitos pontos em que à noite ficam em absoluto breu e isso contribui para a violência urbana, os assédios, a sensação de insegurança. Além de desmotivar as pessoas a caminhar a pé
Luisa Pinheiro
Cicloativista

Luisa Pinheiro vê no investimento das calçadas uma forma de tornar a cidade convidativa para o fluxo de pessoas fora de carros. Outro fator observado pela cicloativista está na redução da arborização da cidade. “A gente sabe que a árvore é muito necessária em uma cidade tão solar como a nossa para ter um clima mais agradável e mais frescor”, conclui.

 

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