Edifício Andrea: dois anos após tragédia, moradores não receberam indenização paga pela Prefeitura em 2020
Sequelas físicas e emocionais do desabamento resistem no dia a dia de sobreviventes, enquanto processo sequer tem previsão de julgamento
10h28 de 15 de outubro de 2019. Não importa o tempo que passe, data e hora jamais serão esquecidas por quem vivenciou, direta ou indiretamente, o desabamento dos sete andares do Edifício Andrea, na área nobre de Fortaleza – que deixou 9 mortos, 7 feridos (relembre nomes abaixo) e incontáveis sequelas.
Dois anos depois da tragédia, os acusados sequer foram julgados, enquanto os ex-moradores seguem sem receber indenização nem o pagamento pela desapropriação do terreno.
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São 24 meses em que as incertezas sobre o futuro pesam na família de Paulo Rômulo, 61, desde que a moradia no 102 do Edifício Andrea o deixou. “A gente tinha um apartamento pra morar com sacrifício. Tínhamos tudo, com o suor da gente, e saímos só com a roupa do corpo. Começamos a vida do zero. Perdemos tudo, só não a vida, graças a Deus”, diz.
Minha vizinha tinha vendido o apartamento por cerca de R$ 300 mil. A dona Penha tinha gastado R$ 82 mil na reforma do dela, e perdeu tudo, inclusive a vida. Outra senhora, que morava no 601, ainda está inválida e não recebeu nada
Em setembro de 2020, a Prefeitura de Fortaleza pagou R$ 1,78 milhão pela desapropriação do terreno onde ficava o prédio, montante a ser distribuído pelo Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) entre os 13 moradores. Até hoje, o repasse não foi feito.
Os valores não foram liberados porque será definida a quantidade proporcional a ser paga para cada proprietário em uma situação em que há “uma grande quantidade de requerentes e em diversas situações”, como informou o TJCE por meio de nota.
“Além da aferição dos valores individuais de cada condômino; falta ainda a localização do domicílio de algumas partes, cujos endereços estão sendo buscados através do Sistema Inforjud, de modo a viabilizar as citações no processo em questão”, detalhou o órgão.
Do total, Paulo estipula receber R$ 135 mil. Ele também ingressou com ação judicial para receber da Caixa o seguro que pagava com a esposa junto às prestações do financiamento do imóvel. O casal, aliás, está “com o nome sujo por não pagar as parcelas de um apartamento que não existe mais”.
A Caixa Seguradora levou em consideração a falta de conservação e a intervenção feita na estrutruta sem técnica adequeda para negar a cobertura do seguro, como informou por nota enviada ao Sistema Verdes Mares. "Durante o serviço, foi também retirado o concreto da estrutura, deixando assim as ferragens de muitos pilares simultaneamente expostos, caracterizando portanto, a imperícia técnica. Portanto, o sinistro foi negado por ausência de risco coberto", concluiu.
Enquanto aguarda definição sobre o ressarcimento, a família vive num apartamento emprestado pela cunhada de Paulo. “A gente reza, pede forças a Deus, e aqui e acolá desabafa e chora um pouco, porque precisa que se resolva”, confessa o pai do jovem Davi Sampaio, sobrevivente do desabamento.
O advogado que representa três antigos proprietários de apartamentos no Edifício Andrea protocolou, na quinta-feira (14), na ação que já tramita, uma petição cobrando da juíza do caso a definição quanto ao repasse dos valores a quem já se apresentou ao TJCE.
Lacunas
As sequelas materiais, físicas e emocionais da tragédia persistem não só no cotidiano de quem vivia no Andrea, mas de quem estava no local errado às 10h28 do dia 15 de outubro de 2019 – como Gilson Moreira Gomes, 60, que fazia compras no mercadinho em frente ao prédio quando viu tudo escurecer.
“Fiquei seis horas soterrado com as duas pernas presas”, relembra. Por causa dos ferimentos, o auxiliar administrativo teve de amputar parte do pé, faz fisioterapia para recuperar a mobilidade e se agarra na fé para lidar com o que pesa no peito.
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“O rapaz do caminhão de água faleceu do meu lado, ele agonizava. Eu comecei a agonizar também, estava me afundando”, descreve. O “rapaz” era o entregador de água Frederick Santana dos Santos, 30, primeira das 9 mortes confirmadas, às 23h55.
Além das lembranças, o auxiliar administrativo tem de lidar com a perda da renda familiar, já que os filhos ficaram desempregados e ele não recebeu benefício ou aposentadoria.
Eu sinto pelas pessoas que foram, era para ter colocado um aviso que aquilo estava em reforma, porque, se fosse o caso, a gente nem passava perto
E os culpados pelo desabamento?
Ainda não houve responsabilização pela queda do Edifício Andrea. Em janeiro de 2020, os engenheiros José Andreson Gonzaga dos Santos e Carlos Alberto Loss de Oliveira e o pedreiro Amauri Pereira de Souza foram indiciados pelo artigo 29 da Lei das Contravenções Penais, por “provocar o desabamento de construção ou por erro na execução”.
O TJCE decidiu, em abril deste ano, que os três deveriam responder por homicídio doloso, quando se assume o risco de matar. O processo tramita na 2ª Vara do Júri de Fortaleza e ainda aguarda denúncia do Ministério Público do Estado (MPCE), para, só então, os acusados se tornarem réus.
Devido a mudanças no MP, o órgão afirma que “estão sendo priorizados casos que envolvem réus presos e pedidos cautelares, o que não é o caso desse procedimento”. Dessa forma, não há previsão para denúncia e julgamento do caso Andrea.
Relembre quem estava no prédio
9 mortos
- Frederick Santana dos Santos: entregador de água que estava num mercadinho ao lado do Edifício Andrea. Deixou esposa e filha.
- Maria da Penha Bezerril Cavalcante: Penha, como era chamada, morava no 1° andar. No momento da tragédia, estava em casa com a diarista, Cleide Carvalho, que sobreviveu.
- Izaura Marques Menezes: avó de Fernando Marques, um dos sobreviventes. A idosa era professora aposentada, mãe e esposa de duas vítimas.
- Vicente de Paula Menezes: morava no 5º andar com a esposa Izaura. Veio para Fortaleza com parte da família após morar no Rio de Janeiro.
- Rosane Marques Menezes: era assistente administrativa, filha de Izaura e Vicente. Morava no 3º andar com o filho, Fernando.
- José Eriverton Laurentino Araújo: foi cuidador dos idosos Vicente e Izaura por 20 anos, estava no prédio na hora da ocorrência. Ele deixou esposa e filho.
- Antônio Gildásio Holanda Silveira: viúvo, morava no prédio provisoriamente, tendo chegado 15 dias antes do desabamento junto à filha. Deixou dois filhos.
- Nayara Pinho Silveira: filha de Gildásio. Era psicóloga, tinha 31 anos e teve o corpo resgatado por volta de meio dia do dia 15 de outubro.
- Maria das Graças Rodrigues: era síndica do Edifício Andrea e morava no 5º andar do prédio. Ela estava no térreo no momento em que a construção ruiu.
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7 sobreviventes
- Fernando Marques: filho de Rosane, neto de Izaura e Vicente Marques. Tinha 20 anos, à época, e foi o primeiro resgatado com vida dos escombros;
- Antônia Peixoto Coelho: foi resgatada e permaneceu em estado de saúde grave após a tragédia;
- Cleide Maria da Cruz Carvalho: era diarista na casa de Maria da Penha, morta no desabamento;
- Davi Sampaio: estudante ficou soterrado por algumas horas, sofreu escoriações e fez selfie sob os escombros para tranquilizar a família. Filho de Paulo, ouvido nesta reportagem.
- Gilson Gomes: idoso ouvido nesta reportagem, trabalhava próximo ao local e estava no mercantil ao lado do prédio.
- Francisco Rodrigues Alves: porteiro e zelador do Edifício Andrea. Aparece correndo em um vídeo do momento do desabamento.
- João Ycaro Coelho: foi resgatado na tarde do desabamento. É sobrinho da idosa Antônia Peixoto Coelho, também resgatada com vida.
“O Edifício Andrea foi um divisor de águas”
Após os sete andares do prédio virarem ruínas por possíveis erros na execução de reforma nos pilares, o debate sobre a importância da inspeção predial e da manutenção estrutural das construções de Fortaleza e do Ceará veio à tona.
Um ano depois da queda do prédio, o número de ocorrências por risco de desabamento registradas pela Defesa Civil da capital havia crescido mais de 11 vezes. Em outubro, novembro e dezembro de 2019, foram 1.585 chamados; contra apenas 139 em igual período de 2018.
Emanuel Mota, presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Ceará (Crea), sentencia que a tragédia “foi, sim, um divisor de águas: as mortes e a comoção não foram à toa”.
Para ele, Fortaleza “precisa de uma mudança cultural muito forte no tocante à segurança e à manutenção estrutural”, movimento que foi impulsionado pela tragédia do Andrea – mas que ainda segue aquém do esperado.
O ponto alto é que nas contratações dos condomínios, já há um maior rigor: eles têm exigido projetos, profissionais qualificados e experientes. Não optam necessariamente pelo menor preço
O presidente do Crea pontua, ainda, que é preciso leis de maior rigor sobre o assunto, como a Lei da Inspeção Predial (nº 9.913/2012), que obriga “vistoria técnica, manutenção preventiva e periódica das edificações” da cidade.
“No final dos anos 1990, havia muitos acidentes de carro, sempre com vítimas, devido à não utilização do cinto. Essa cultura mudou a partir da lei que obrigou o uso, e vemos menos acidentes agora. O mesmo se aplica para a questão das edificações”, ilustra Emanuel.
Memórias
Parte da equipe do Sistema Verdes Mares contou os detalhes da cobertura sobre o desabamento do Edifício Andrea no podcast Reconstrução - Edifício Andrea, em quatro episódios.