Denúncias de exploração sexual de crianças e adolescentes caem 27% no Ceará

Entidades de defesa alertam que a pandemia dificultou o acesso a órgãos de investigação e manteve vítimas e agressores, em muitas ocasiões, sob o mesmo teto.

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Criança se escondendo com bichinho de pelúcia
Legenda: De 1º de janeiro a 12 de maio deste ano, já houve 34 denúncias de exploração sexual
Foto: Shutterstock

exploração sexual é considerada por especialistas uma das mais danosas formas de trabalho infantil. Ainda assim, o fenômeno ocorre e não é tão incomum quando se pensa, apesar do recuo das denúncias ocorridas no Ceará, a partir da pandemia da Covid-19.

Em 2020, foram recebidas 74 denúncias do tipo através do Disque 100, serviço administrado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). O número é 27% menor que as 104 recebidas em 2019, e 42% atrás das 128 contabilizadas em 2018.

Contudo, quando se avaliam os dados por semestre, 2021 apresenta um aumento sutil em comparação ao ano passado. Nos seis primeiros meses de 2020, foram recebidas 32 denúncias de exploração sexual. De 1º de janeiro a 12 de maio deste ano, já foram 34.

Para Marina Araújo, da coordenação colegiada do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE), os dados do Disque 100 são “muito subnotificados” em comparação com a realidade, mas escancaram prejuízos trazidos pela pandemia:

  1. Redução de denúncias formais por canais oficiais
  2. Dificuldade no acesso presencial a equipamentos de denúncia
  3. Aprofundamento de vulnerabilidades

“Acreditamos que, durante o isolamento social, a violência sexual se agrava devido à dificuldade de acesso presencial aos órgãos de denúncia. Os dados também apontam que existe uma maior porcentagem de abusos praticados por pessoas da própria família ou conhecidos, então no isolamento social a convivência com possíveis agressores se agrava”.

A representante lembra que esse tipo de violência atravessa relações de poder não só relacionadas à idade, mas também de gênero, porque a grande maioria das vítimas é de meninas e, os agressores, de homens adultos. Logo, é necessário garantir espaços de acolhimento e escuta humanizada dos casos.

Os gargalos no acesso presencial são confirmados por Kelly Meneses, coordenadora da Rede Aquarela, vinculada à Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci) de Fortaleza. O programa desenvolve ações de prevenção e atendimento para crianças e adolescentes vítimas de abuso e exploração sexual.

Não percebemos um aumento significativo de casos que chegaram para atendimento do programa. A média 2019-2020 não mudou, mas acreditamos que a violência aumentou sim”
Kelly Meneses
Coordenadora da Rede Aquarela

Kelly ressalta que a escola era um dos principais ambientes de denúncia, mas estão fechadas pelo risco de contaminação pela Covid-19.

Porém, com a pandemia, o Atendimento Psicossocial Continuado da criança e da família até a superação da violência sofrida foi adaptado para o formato virtual. A média do serviço passou de 350 para 700 atendimentos por mês. O aumento foi de 4.244 atendimentos, em 2019, para 6.993, em 2020.

“Com o formato virtual, observamos uma celeridade nesse processo de superação porque as vítimas estão com frequência maior nos atendimentos. Com isso, elas alcançam a superação mais rapidamente”, comemora a coordenadora.

A conselheira tutelar da Regional I, Cecília Góis, ressalta que a exploração sexual é “invisibilizada pela sociedade”, que não percebe a necessidade de denunciar. “Muitos acham que o menino ou a menina estão lá de livre e espontânea vontade, mas criança e adolescente não faz prostituição, faz parte de uma rede de exploração”, alerta.

A especialista aponta que, como alguns são mantidos sob ameaça, coação e chantagem, é preciso manter a observação de sinais de alerta para mudanças de comportamento, como agitação, agressividade e receio da proximidade de algum parente.

O atendimento do caso deve ser realizado o mais próximo do episódio de violência, segundo Kelly Meneses. Se ocorrer um trauma, quanto mais tempo demorar a intervenção, mais graves poderão ser as sequelas. Além disso, quanto mais episódios se repetirem, mais difícil será a superação.

Plano de enfrentamento

Marina Araújo, do Cedeca-CE, defende que o Município de Fortaleza e o Governo do Estado atualizem os respectivos Planos de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, essenciais para traçar diretrizes sobre o tema

“Ainda temos muitos desafios para a prevenção nas escolas, desenvolvimento de autodefesa e autoconfiança, compreensão sobre direitos sexuais e empoderamento para a não-violência, além do fortalecimento de equipamentos de atendimento psicossocial”, sugere.

Kelly Meneses, da Rede Aquarela, explica que o plano de Fortaleza já está em construção desde o ano passado, a partir de grupos de trabalho com o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Comdica). A previsão de conclusão é até o fim de 2021.

Exploração de crianças e adolescentes
Legenda: Em 2020, houve um total de 3.598 denúncias de atos contra crianças e adolescentes no Ceará
Foto: Shutterstock

Registros gerais

Mesmo com baixas, as denúncias de atos contra crianças e adolescentes ainda são as mais representativas no Disque 100, no Ceará. Em 2020, um total de 3.598 denúncias resultou em 14.485 violações contra esse público - a cada denúncia, mais de uma violação pode ser comunicada.

Isso representa 30% do total de denúncias (12.001) recebidas pelo canal, no mesmo período, que abrange ainda violências contra mulheres, idosos, pessoas com deficiência e LGTBs, dentre outros grupos vulneráveis.

Conforme o MMFDH, as denúncias mais recorrentes no Ceará são as que violam a integridade de crianças e adolescentes, como violência física (maus-tratos, agressão) e violência psicológica (ameaça, assédio moral, alienação parental).

Além da exploração sexual, o trabalho infantil foi denunciado em 103 ocasiões, no ano passado. Em 2021, até 12 de maio, foram 24 queixas do tipo.

Nesses trabalhos, crianças e adolescentes também se expõem a riscos. Em 2020, o Ceará registrou 23 casos de acidentes durante trabalho entre pessoas de 5 a 17 anos, segundo levantamento do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI). 

As situações envolvem, por exemplo, fraturas, intoxicações e picadas de animais peçonhentos. Houve aumento comparado a 2019, quando foram contabilizados 18 acidentes.

Encaminhamentos oficiais

O MMFDH ressalta que o Disque 100 funciona 24h por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. As ocorrências são encaminhadas “aos órgãos competentes”.

A Polícia Militar do Ceará (PMCE) informou que o trabalho de atendimento e acompanhamento dessa população em Fortaleza é realizado pelo Grupo de Apoio às Vítimas de Violência (GAVV). No Interior, segundo a corporação, também há grupos de policiais militares treinados para o tratamento específico de crianças e adolescentes que sofrem abusos sexuais.

Já a Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente (Dceca) atua na investigação dos casos, realizando atendimentos com apoio de psicólogos, assistente social e agente administrativo da Rede Aquarela. “Mesmo durante o período de isolamento social, a especializada segue funcionando normalmente”, garante.

Além de Fortaleza, a Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce) também possui seis núcleos em Sobral, Juazeiro do Norte, Quixeramobim, Canindé, Iguatu e Tauá para o “acolhimento humanizado às vítimas de violência sexual e doméstica” que precisem realizar exame de corpo de delito.

O Código Penal Brasileiro estipula pena de 4 a 10 anos por exploração sexual de adolescentes com mais de 14 e menos de 18 anos, tanto para quem alicia como para quem pratica o ato. Relações carnais ou atos libidinosos com crianças menores de 14 anos, com ou sem consentimento, são tipificadas como estupro de vulnerável e preveem pena de 8 a 15 anos de reclusão.

 

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