De cólera a pólio: Ceará já se livrou de, pelo menos, quatro grandes epidemias nos últimos 150 anos

Com a atuação da ciência e soluções que vão das vacinas ao combate a mosquitos, o Estado já se livrou de, ao menos, quatro grandes epidemias

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
vacina pólio
Legenda: A vacina contra a pólio é dada no Ceará rotineiramente em postos de saúde e também na campanha nacional de vacinação
Foto: Fabiane de Paula

Crises sanitárias que afetam o cotidiano, mobilizam autoridades de saúde e pesquisadores, lotam as estruturas de assistência e demandam rapidez nos trabalhos para atingir o controle das doenças. Cenário caótico, que, vivenciado na pandemia de Covid, se repetiu, embora em proporções distintas, a cada epidemia na história do Ceará. 

Apesar das inúmeras mortes e impactos, com a evolução da ciência e soluções que vão da vacina ao combate a vetores, o Estado já se livrou de, ao menos, 4 grandes epidemias, são elas: varíola, poliomielite, cólera e malária

Essas doenças já provocaram milhares de óbitos no Estado. Com disseminação rápida e massiva, algumas das patologias atravessaram os séculos em surtos epidêmicos; enquanto outras emergiram no século 20. 

A cada nova epidemia, explica o médico e coordenador da Fiocruz Ceará, Carlile Lavor, a gestão pública vai aprendendo novos manejos para a combatê-las. Contudo, uma das principais iniciativas é, assim como ocorreu com a Covid-19, descobrir logo a forma de transmissão, para que sejam executadas medidas de bloqueio. 

Outro fator comum, conta ele, é que normalmente há adoção do isolamento das pessoas contaminadas.

“Justamente porque são doenças transmissíveis e precisamos avaliar a forma de transmissão, se é pela água, por mosquito, por via aérea. A forma de transmissão é um dos focos em qualquer epidemia”.
Carlile Lavor
Médico e coordenador da Fiocruz Ceará

Surto de cólera na década de 1990

No começo de 1991,  o Brasil registrou casos de cólera no Amazonas. Em 1994, o surto da doença, considerada milenar, continuou em expansão, com registro de 51,3 mil casos no país, sendo 49,2 mil somente na Região Nordeste. Na época, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Norte e Alagoas tinham os maiores coeficientes de incidência, conforme informações do Manual Integrado de Vigilância Epidemiológica da Cólera do Ministério da Saúde. 

A população cearense padecia com mais uma epidemia da doença, à época, na América Latina. No Ceará, o estado de emergência foi decretado pela gestão estadual, quando em 1994, a Capital registrava mais de 10 mil casos. 

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Foto: Arquivo Diário do Nordeste

A medida fundamental para combater à doença, cujos principais sintomas são diarreia e vômito, e a transmissão ocorre por meio da ingestão de água e alimentos contaminados com a bactéria, foi a distribuição de hipoclorito de sódio em cada residência por agentes de saúde.

As condições precárias de saneamento básico, consumo de água sem tratamento e o de alimentos sem manipulação adequada foram fatores determinantes para a disseminação da cólera.

Segundo o Ministério da Saúde, a partir de 1995 houve uma importante diminuição do número de casos no país e a epidemia recuou em 1999. Os últimos casos registrados no Nordeste foram notificados em 2005, em Pernambuco e desde 2006 não são registrados casos autóctones (transmissão local) no Brasil. 

Vacina livrou da poliomielite

A vacinação é a única forma de prevenir a doença contagiosa aguda causada por vírus que, em casos graves, pode acarretar paralisia nos membros inferiores. A poliomielite, também chamada de pólio ou paralisia infantil, acometeu inúmeros pacientes no Ceará e deixou sequelas por gerações, sobretudo, entre as décadas de 1960 e 1980. 

A poliomielite, provocada pelo poliovírus, pode infectar crianças e adultos por meio do contato direto com fezes ou com secreções eliminadas pela boca de doentes e  também pode ser disseminado por contaminação da água e de alimentos por fezes.

No Brasil, as ações de combate à pólio começaram em 1961, com a vacinação de forma não sistematizada. Mas, em 1971, foi instituído o Plano Nacional de Controle da Poliomielite,  devido à ocorrência de repetidos surtos da doença em vários pontos do território nacional. 

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Foto: Arquivo Diário do Nordeste

No Ceará, o último registro foi em Crateús em 23 de maio de 1988, segundo o Plano de Erradicação da Poliomielite: Estratégia no Brasil. Desde então, casos suspeitos continuam sendo notificados, mas sem confirmações. No Brasil, o último caso de infecção pelo poliovírus selvagem ocorreu em 1989, em Souza (PB). 

“Ainda existe no Afeganistão e no Paquistão, são os dois últimos países que ainda precisam deter para se completar a erradicação. E há uma certa dificuldade porque é um vírus que resiste na água. Vacinando você elimina. No Brasil, a pólio a gente continua vacinando por que, a qualquer momento, pode vir uma pessoa da área que ainda existe e contaminar e se transmitir”.
Carlile Lavor
Coordenador da Fiocruz Ceará

A vacina é dada no Ceará rotineiramente em postos de saúde e anualmente há campanha nacional de vacinação. A vacina é oral e deve ser administrada aos dois, quatro e seis meses de vida. O primeiro reforço é feito aos 15 meses e o outro entre 4 e 6 anos. 

Em 1994, o Brasil e os demais países do continente americano, receberam da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) o Certificado da Erradicação da Transmissão Autóctone do Poliovírus Selvagem. O último caso da doença registrado no Brasil foi em 1990.

Malária no Vale do Jaguaribe

Em março de 1930, uma espécie de mosquito jamais antes vista na América foi achada no litoral brasileiro. Segundo Carlile Lavor, “havia um trânsito grande entre a África e a cidade de Natal (RN). Chegou, então, esse mosquito que transmite intensamente a malária. O Rio Jaguaribe, grande parte dele ficou contaminado. E teve muita morte”. 

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Legenda: Guarda do Serviço de Malária no Nordeste utilizando o guarda-chuva durante aplicação de inseticida em moradia no Ceará em 1940.
Foto: Arquivo Fundação Rockefeller/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

A malária é uma doença infecciosa potencialmente grave transmitida ao homem, na maioria das vezes pela picada de mosquitos do gênero Anopheles infectados. Na época, após um surto em Natal, o mosquito Anopheles gambiae se alastrou pelo interior do Ceará entre 1932 e 1937, causando uma epidemia na região.

O Vale do Jaguaribe foi drasticamente afetado. Cidades como Russas, Aracati, Limoeiro, Morada Nova e Jaguaribe são algumas atingidas pela epidemia à época. 

Devido à grave situação de descontrole sanitário, em 1939 o Governo de Getúlio Vargas firmou um acordo com representantes da Fundação Rockefeller, norte-americana para combater o mosquito. Uma das principais diretrizes da campanha de combate a essa epidemia foi a aspersão de inseticidas nas moradias.

Após ser decretada a erradicação do mosquito Anopheles gambiae, entre 1941 e 1942 o Serviço de Malária do Nordeste tornou- se referência mundial no combate às pestes maláricas. 

“Nós temos ainda malária no Brasil, mas não por esse mosquito. São mosquitos brasileiros que continuam a existir e nós continuamos a ter malária. Esporadicamente temos casos no Ceará, bem poucos, não são epidêmicos. São casos de alguém que vem da região Norte e vem contaminado. Temos no Ceará outros tipos de mosquito Anopheles. Mas é ainda uma doença que provoca muitos problemas na Região Norte”, afirma Carlile. 

Varíola: primeira doença erradicada

O mundo vivenciou sucessivas epidemias de varíola, ao longo da segunda metade do século XIX. No Ceará, na seca de 1877 a 1880, a varíola provocou milhares de mortes, chegando no dia 10 de dezembro de 1878. Fortaleza chegou a contabilizar, em apenas um dia, 1.004 mortos em decorrência de uma epidemia da doença. 

Devido à estiagem, milhares de sertanejos de outras regiões do Estado buscaram abrigo em Fortaleza. Esse movimento resultava em aglomeração, propiciando a rápida disseminação dos microrganismos e o aumento da transmissão da doença. “A varíola é a companheira inseparável das secas e estas são, por sua vez, o mal congênito da terra cearense", narra farmacêutico que testemunhou e registrou os estragos provocados pela doença, Rodolfo Teófilo, no livro “Varíola e vacinação no Ceará”. 

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Legenda: Imagens do livro "Varíola e vacinação no Ceará" de Rodolfo Teófilo, edição de 1904.
Foto: Arquivo acervo de obras raras Fiocruz

Segundo a Fiocruz, a varíola era uma doença infecciosa grave e exclusiva do homem, causada pelo vírus chamado Orthopoxvirus variolae. A transmissão ocorria de pessoa para pessoa por meio das vias respiratórias. 

Após a contaminação ele se estabelecia na garganta e nas fossas nasais e causava febre alta, mal estar, dor de cabeça, dor nas costas, dentre outros. Dias depois, assumia a forma mais severa com erupções avermelhadas na garganta, boca, rosto e depois se espalhavam pelo corpo.

Com o tempo, as erupções evoluíam e se transformavam em pequenas bolhas cheias de pus, que provocavam coceira intensa e dor. A primeira vacina criada na história humana foi justamente para combater a varíola.

“Foi a primeira doença que o mundo inteiro erradicou pela vacina. Foi o primeiro grande sucesso da Organização Mundial da Saúde, eliminar uma doença em todos os países. O mundo inteiro vacinou as suas populações. O vírus só vive no homem, então, quando vacinou todas as pessoas, acabou o vírus. Ele só existe hoje guardado em alguns laboratórios de maior cuidado da Organização Mundial da Saúde”, explica Carlile. 

Em abril de 1971, 19 moradores do bairro da Penha, na cidade do Rio de Janeiro, foram os últimos a terem varíola no Brasil. Em 8 de maio de 1980 a OMS reconheceu a erradicação da varíola no mundo, uma das piores doenças e geradoras de cruéis epidemias.  

 

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