De braços abertos

Uma igreja de portas lacradas é uma história escondida. É uma cidade sem patrimônio que de alguma forma perde seu valor

Escrito por Luã Diógenes , metro@svm.com.br
Legenda: Católicos de diversas regiões do Ceará presenciaram e agradeceram pela reabertura das igrejas
Foto: Thiago Gadelha

O Nordeste brasileiro em sua essência histórica e cultural é uma "terra de devoção". A região marcada por romarias, louvores, rezas e até o sincretismo religioso que atravessa gerações se faz presente também no Ceará. Seja por São Francisco das Chagas, em Canindé, ou o Padre Cícero de Juazeiro do Norte, a fé e a identidade cearenses caminham lado a lado sempre sob o olhar de seus santos e de suas orações.

Durante esses longos meses de quarentena, dentre as privações causadas pelo temor da Covid-19, católicos de todo o Estado tiveram de lidar com a dor de verem seus templos fechados. Vale ressaltar que muito se engana quem pensa nas igrejas como locações exclusivamente de missas. Na verdade elas vão além, são ambientes de encontros e reencontros. Carregam consigo a história de seus fiéis e da própria cidade no qual marcam a trajetória religiosa.

Apesar de ser uma capital "jovem" comparada a outras do País (possui apenas 294 anos), Fortaleza também tem sua biografia contada por suas igrejas. Aliás, quatro anos depois de sua fundação, a cidade receberia seu primeiro templo católico. A Igreja do Rosário foi construída por escravos africanos em 1730. Durante longo período ocupou o cargo de Catedral e até hoje resiste no Centro da Capital, em plena Praça General Tibúrcio e resguardada por seus leões.

Ainda no mesmo bairro encontramos a Igreja do Carmo, na movimentada Duque de Caxias. Há também a Igreja do Patrocínio, que é ponto de oração dos feirantes da Rua Guilherme Rocha e a Igreja do Pequeno Grande, que marca o início da Avenida Santos Dumont. Todos esses locais de costumeira movimentação se contiveram em ter suas portas fechadas, buscando resguardar seus frequentadores de um terrível vírus que insiste em desafiar o tempo.

Até a imponente Igreja da Sé, Catedral Metropolitana, se manteve vazia nesse longo período. Seus vitrais pareciam observar uma cidade silente, onde os cidadãos tiveram de ser os "verdadeiros templos vivos de Deus". Com o impedimento das procissões, avenidas como a "Leste Oeste" e a "Treze de Maio", que recebiam a "Caminhada com Maria" e os festejos de Nossa Senhora de Fátima, respectivamente, só ouviam as sirenes das ambulâncias velozes lutando para salvar vidas.

Incertezas

A capela de São Pedro no fim da Avenida Beira-Mar já não tinha como receber os pescadores aflitos logo neste momento de tantas incertezas, inclusive de como estes iriam garantir o sustento de suas famílias em meio a uma grave e paralisante pandemia. A imagem de Nossa Senhora da Saúde, também no Mucuripe, se tornaria um ponto de oração dos devotos que suplicavam o bem-estar dos seus, já que o santuário em homenagem à santa continuava trancado.

Longas semanas se passaram, aos poucos o mundo reagia aos duros golpes do vírus e no Ceará não foi diferente, porém, mesmo com autorização para a realização de missas e celebrações presenciais, a Arquidiocese de Fortaleza orientou que os templos deviam continuar fechados e novamente outro período de espera seria atravessado.

Silêncios

Uma igreja de portas lacradas é uma história escondida. É o silêncio do padre sem poder ditar sermões, o olhar solitário das beatas sem terem onde conversar, ou a tristeza da criança ao ver chegar domingo e não poder ganhar pipoca na condição de se comportar na missa. São pessoas sem emprego, estudo, auxílio, com fome e desamparadas em vários sentidos. É uma cidade sem patrimônio que de alguma forma perde seu valor.

No último sábado, católicos de várias localidades do Estado exclamaram um "graças a Deus" ao vivenciarem a reabertura das igrejas, que voltaram a funcionar com sérias medidas de proteção e distanciamento. Mesmo com tais restrições, já é um respiro para vários cristãos, que se sentem mais fortes e acolhidos em sua "antiga casa".

A reabertura dos templos não favorece só ao catolicismo, mas à esperança de um povo. Mostra-se como sensação revigorante de observar o surgimento dos primeiros raios de sol freando a tempestade, que anunciam "boas novas"... O sonho de que o pior já passou parece se tornar uma realidade a cada dia e de alguma forma muitos sentem que vale a pena ter fé. Agora a imagem tão exaltada do Cristo preso na cruz, conforme contam os livros, abre os braços para receber o seu povo e novamente proteger a cidade que, em breve, será vitoriosa.

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