Crianças do CE pedem comida e emprego a Papai Noel dos Correios: 'Não tem presente, foco é alimentação'
Crise econômica leva os pequenos a pedirem pelo essencial em meio ao cenário de vulnerabilidade das famílias; mais de 6 mil bilhetes chegaram aos Correios em 2021 com recebimento encerrado
Ceará, dezembro de 2021.
Aqui, o cenário de aumento das vulnerabilidades leva as crianças a pedirem pelo básico em cartas endereçadas ao Papai Noel dos Correios, projeto que, neste ano de 2021, teve mais de 6 mil envios. Alimentos, vagas no mercado de trabalho e acesso aos dispositivos para acompanhar os estudos deixam de ser preocupação de gente grande e são mostras dos prejuízos sociais intensificados pela pandemia.
Os pedidos por comida e emprego não ficam disponíveis para o público pela logística usada na campanha, mas o Diário do Nordeste teve acesso a cartas nesse sentido. Os outros textos, aprovados pela equipe dos Correios, são divulgados para adoção da sociedade.
Entre os bilhetes está o da Ysadora Rodrigues, de 13 anos, que pede uma cesta básica e uma vaga de porteiro. "Todos os anos eu escrevo cartas para o Papai Noel dos Correios", destaca sobre o pedido durante a pandemia. Entre o ingênuo e a maturidade, a menina demonstra preocupação com família em situação de vulnerabilidade.
"Se você estiver lendo a minha carta é porque eu irei lhe pedir uma cesta básica e se por acaso o(a) senhor(a) estiver precisando ou conhecer alguém que estiver precisando de um porteiro, meu pai está precisando de emprego. Ele trabalhava de porteiro, mas no momento está desempregado".
A correspondência da Ysadora, apesar de despertar atenção, não foi a única do tipo recebida na campanha natalina dos Correios deste ano. Mais de 6 mil cartas foram recebidas e os pedidos por alimento, emprego e celular se amontoam.
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Há cerca de 5 anos a menina envia cartas para o Papai Noel, mas durante a pandemia, o desejo por brinquedos foi substituído por itens básicos.
“Só com o que minha mãe ganha às vezes fica muito apertado, porque são quatro crianças e tem aluguel, água, alimentação…”, reflete sobre a situação. Ysadora vive com os pais e outros três irmãos em casa.
Para o pai da menina, a preocupação com a família se intensifica com os prejuízos sociais e psicológicos da pandemia, como observa José Wagner Nunes da Costa, de 45 anos. “Eu fiquei desempregado, preciso pagar aluguel, que às vezes intero com o Bolsa Família”.
Reflexos da pandemia
Com as incertezas na renda, Wagner não consegue fazer entrega de presentes, mas busca oportunidade no mercado e distribui currículos. “Minha mulher faz bicos de faxina, tudo isso dificultou na alimentação e em colocar as contas em dia”, acrescenta.
Wagner e a esposa foram diagnosticados com a Covid-19, porque “ela pega muitos ônibus, acabou contraindo e trazendo para dentro de casa”, reflete. Um celular foi vendido para comprar insumos e as consequências disso impactaram o estudo remoto das crianças.
Ao lado dos irmãos, Ysadora escreveu o texto com base nas atividades feitas na escola. “Naquela semana eu estava fazendo prova de português. Na gramática, encontrei palavras corretas, me inspirei e usei na carta”, explica.
Aqui em casa não tem presente no Natal, minha mãe foca mesmo na alimentação
Em outro cenário, Ysadora Rodrigues gostaria de um presente para passar o tempo ou fortalecer os estudos. “Se eu já tivesse tudo, algo que eu quero muito, mas até agora não fui contemplada, foi um quebra-cabeça de 500 peças. Também poderia ser algum livro, gramática…”, acrescenta
Mudança nos pedidos
“Esse ano foi comum o pedido de emprego para os pais, muito pedido de tablet, porque os alunos têm de usar para aulas virtuais - muitas famílias só tem um celular para as crianças”, contextualiza Ricardo de Souza, coordenador de comunicação da superintendência dos Correios no Ceará.
Apesar do regulamento indicar que não são aceitos pedidos por alimento, as cartinhas com esse desejo se acumulam. “Nós temos recebido muitas cartas solicitando alimentação e, fisicamente, tem vindo muita gente deixar cartas pedindo comida. São narrativas emocionantes, situação de fome mesmo”, frisa.
Alguns falam que não adianta ganhar brinquedo se as crianças estão com fome. Então, a gente dá um tratamento especial e enviamos essas cartas para adoção pelos empregados dos correios e por parceiros
O estudante Manuel Richard, de 12 anos, pede ao Papai Noel a ferramenta necessária para as atividades da escola, porque a tela do computador está danificada. "Eu também uso para desenhar, pois sou desenhista e gostaria que me ajudassem com essa tela" destaca.
“É um programa de responsabilidade social dos Correios, mas nós contamos com a participação efetiva da sociedade na adoção de cartas e com algumas empresas parceiras, que são padrinhos corporativos”, destaca Ricardo de Souza.
Representantes da iniciativa privada podem adotar mais de 100 cartas em uma mesma campanha para beneficiar as crianças, principalmente, com bonecas, carrinhos e jogos. “Nós recebemos muito mais pedidos de brinquedos, mais de 85%, mas como o mote da campanha é ‘tire os sonhos do papel’, nós não interferimos nos sonhos da criança”.
Preocupação com alimento
O bilhete do pequeno Jefferson Rodrigues, de 9 anos, não se prolonga ao saudar o destinatário: "Olá, Papai Noel, gostaria de ganhar uma cesta básica”. O pedido acompanha o real desejo de ver a avó, mãe de criação, conseguir o sustento de forma menos sofrida.
“Minha mãe estava costurando para comprar arroz para nós jantarmos, aí eu decidi escrever essa cartinha para ela não ficar trabalhando muito”, lembra sobre o momento em que ouviu uma conversa na casa onde também mora com o avô.
Apesar de não ser a primeira vez que o menino participa da campanha, Jefferson também nunca foi presenteado. Se a situação fosse outra, o pedido seria por brinquedo, como confidência. “É muito triste para mim, como a comadre da minha mãe veio (para levar as cartinhas), decidi escrever isso”.
Maria Antônia Rodrigues Silva, de 52 anos, busca o sustento com o ajuste de roupas e o benefício do Bolsa Família. “Eu penso que ele cresça e seja um bom menino, que trabalhe para nos ajudar, porque o sonho dele é esse: ‘mãe, quando eu crescer, vou trabalhar para ajudar a senhora’”.
Como Jefferson, alunos de escolas públicas e crianças atendidas em instituições sociais somaram mais de 6 mil cartinhas recebidas, até o dia 30 de novembro. As inscrições estão encerradas.
Mobilização ampliada
O agente administrativo Francisco José Bezerra Freire, de 69 anos, encerra o expediente e dá espaço ao Papai Noel que recebe as cartas e entrega presentes nos Correios.
“Atualmente eu faço triagem de cartas, são tantas, de crianças que pedem caixas de chocolate, cestas básicas, ‘não quero presente, quero alimento’. São coisas que cortam o coração”, destaca.
A roupa conhecida ganhou uma máscara de proteção e o desejo ampliado por mais padrinhos para atender os pedidos deste ano. “Eu sou muito católico, espero que melhore, que o povo abra mais o coração. Temos que nos amar, sermos mais compreensíveis. Se abrindo para o mundo e para Deus as coisas são mais fáceis”, destaca.
Com o retorno presencial dos funcionários e o cenário de vulnerabilidade social, há uma maior mobilização. “A campanha, por si só, nos traz muita emotividade, é um voluntariado procurado por todos os empregados, porque todo mundo se sente bem em participar da Campanha Papai Noel dos Correios”, conclui Ricardo de Souza.