Chuvas do passado e presente
No inverno, em uma noite chuvosa, os sentidos são aguçados e explodem as recordações da velha infância.
O chão rachado do sol escaldante virando lamaçal. O cheirinho de terra molhada substituindo o ar quente que queimava as entranhas do sertão. O ruído dos chocalhos dos bichos a correr no terreiro em busca de abrigo. Os cachorros latindo com o vento forte que balançava os galhos secos das carnaubeiras que resistiam a tanta estiagem. Os pingos de chuva tirando o sossego de quem insistia em dormir nas redes da varanda depois de um dia duro de trabalho no roçado. A meninada se deleitando com a novidade e matando a sede com água de gosto tão peculiar, diferente da água salobra tirada do pote nas horas de sede.
Vovô, como todo agricultor grato, com o chapéu de palha na mão e olhos fixos para o céu, louvando cada gota de bênção que caia do céu. Aquele olhar fixo no infinito parecia tentar desvendar os sinais dos céus para tentar descobrir qual a melhor hora para plantar. A postura dele ao pé da porta sempre foi meu grande fascínio. Homem alto, tão robusto, destemido dos males terrenos tão grato às bênçãos de todos os santos. Durante os dias de chuva parecia fazer uma conexão com o divino.
O ruído dos efeitos sonoros da chuva se misturava ao barulho estridente da correria da vovó a espalhar os baldes pela casa para evitar os escorregões. As ventanias do verão tinham removido as telhas do lugar, então ela tinha que agir. Ligeira, certeira para evitar a queda dos netos que buscavam abrigo e aconchego na sua morada. Os espelhos ganhavam lençóis com cheirinho de fundo de guarda roupa. O medo das trovoadas e relâmpagos sempre foi seu ponto fraco. Confesso: herdei esse medo.
Enquanto isso, minha tia resmungava na cozinha. Fazer café com tanta ventania precisava de jogo de cintura. As chamas do fogão a lenha ficavam mais robustas. Os pinotes eram inevitáveis a cada vez que a chama subia e queimava as pontas dos dedos dela. As reclamações eram tantas que ela não parava para contemplar o cheirinho bom do café que a ventania espalhava por toda casa.
Por alguns instantes, o turbilhão de tantas recordações é furtado pela agonia da ansiedade do amanhecer na vida urbana. A confusão dos pensamentos só aumenta ao imaginar o caos no trânsito da cidade, os semáforos desregulados, as ruas alagadas, os carros boiando pelas avenidas, o lixo transbordando nas bocas de lobo. As centenas de famílias com crianças e idosos sem a dignidade de uma moradia que garanta o mínimo de abrigo. O alvoroço dos que moram nas áreas de risco na tentativa de salvar o que têm. A chuva continua a mesma, mas as percepções e sensações... Ah, quanta diferença!
O remexido embaixo dos lençóis das crianças assustadas com tanta chuva me faz cair na real. É domingo. Dia de folga das obrigações matinais da frenética rotina dos noticiosos. Eu vibro silenciosamente, me encolho embaixo dos lençóis e ofereço abrigo, carinho e aconchego. A alegria que nasce em mim escapa no cantinho dos lábios em um sorriso faceiro. Me sinto abençoada por ter uma cama quentinha e ser porto seguro dos pequenos.
Fecho os olhos para sentir um pouquinho mais do frescor da chuva. Apesar do medo, rezo para que venham mais trovoadas e relampeios. Prometo não me deixar levar pela ansiedade urbana. Aperto os olhos para tentar resgatar as recordações da velha infância. Antes de cair no sono de novo, traço o objetivo do amanhecer: tomar um banho de chuva, desapegada das angústias e preocupações urbanas. Arrastar meus filhos para aprender a se deliciar das maravilhas de um dia chuvoso e cultivar sua ligação com esse fenômeno tão abençoado que é a chuva. E aí, o que você vai fazer no próximo dia chuvoso?