“A Igreja sempre andou com o masculino”: mulheres avançam em cargos de liderança católicos no Ceará

Juíza, doutora em Teologia e diretora de faculdade católica relatam trajetórias em espaços onde homens ainda predominam

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Vitória Mendonça, diretora administrativa da Faculdade Católica de Fortaleza
Legenda: Vitória Mendonça é uma das duas mulheres que já ocuparam cargo de diretora administrativa da Faculdade Católica de Fortaleza
Foto: Kid Júnior

“É a primeira mulher no cargo”, “é a única mulher no local”, “nenhuma mulher assumiu esse posto”. É 2021, e o quão comuns são essas frases? Em todos os âmbitos, desigualdade de gênero ainda é assunto irresolvido – e resiste ainda mais em instituições católicas.

No Ceará, porém, mulheres têm avançado para espaços predominantemente masculinos, movimento fortalecido desde que Jorge Mario Bergoglio se tornou Papa Francisco – e ampliou a participação feminina em papéis de liderança na igreja.

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Neste mês, o papa nomeou a freira franciscana e cientista política Raffaella Petrini
como secretária-geral da Governação do Estado da Cidade do Vaticano – a primeira mulher a ocupar o cargo “número 2” da sede da igreja.

Foi a fala de um pontífice, aliás, que despertou a vontade de Tânia Couto, 78, de estudar no então Instituto Teológico Pastoral do Ceará, nos anos 1970 – que, à época, tinha apenas homens, seminaristas, matriculados.

“Ouvi o Papa Paulo VI dizer que ‘a Teologia precisa ser vista e sentida pelos olhos e coração de uma mulher’, foi quando resolvi fazer Filosofia e Teologia. Mas o diretor não queria aceitar minha matrícula à tarde, porque eu era leiga”, relembra Tânia.

Tânia Couto, doutora em Teologia e professora de seminaristas em Fortaleza
Legenda: Tânia Couto, doutora em Teologia e professora de seminaristas em Fortaleza
Foto: Arquivo pessoal

Inconformada, ela questionou o próprio arcebispo Dom Aloísio Lorscheider sobre o impedimento. “O senhor disse que as mulheres estudassem, só posso à tarde, porque tenho marido e filhos, mas o instituto não aceitou minha inscrição”, reclamou a ele. 

Em resposta, Dom Aloísio escreveu uma carta a próprio punho, orientando que o diretor do instituto a aceitasse. A contragosto do gestor, a primeira mulher da turma foi matriculada naquele 1977. 

Os seminaristas não foram muito acolhedores, com exceção de dois. Os outros me negavam tudo. Os professores tinham que aceitar meus trabalhos individuais. 
Tânia Couto
Doutora em Teologia e professora

Hoje, Tânia é doutora em Teologia, e dá aula sobre Bíblia a futuros padres desde 1984. “Depois que eu mostrei que a gente tem também capacidade de estudar, de escrever, fui respeitada. Mas que a igreja, em geral, é muito patriarcal ainda, é”, opina.

A professora reconhece que, nos últimos anos, a presença feminina em posições de liderança no Vaticano tem aumentado, embora o próprio evangelho “pregue uma igreja em que não haja diferença de gênero, etnias e escala social”.

Penso que vai haver reações, porque quem está no poder há quase 2 mil anos não larga. Mas há uma necessidade teológica de que a igreja seja sem divisões.

“O que eles sabem, também sei”

Maria Luiza Saraiva, única mulher juíza eclesiástica da Arquidiocese de Fortaleza
Legenda: Maria Luiza, única mulher juíza eclesiástica da Arquidiocese de Fortaleza
Foto: Arquivo pessoal

Dos 28 membros do Tribunal Eclesiástico da Arquidiocese de Fortaleza, só 8 são mulheres. Entre os 10 juízes, só há um nome feminino: Maria Luiza Saraiva, que já ocupa o cargo há quase 40 dos 77 anos de vida. Desde que o Código de Direito Canônico permitiu a entrada de mulheres no órgão, em 1983.

“É um cargo decisivo: eu posso fazer uma sentença e declarar nulo um casamento, feito por um padre, homem. É um cargo muito importante”, explica a juíza, formada em Letras, Teologia e mestre em Direito Canônico. Desde 1995, quando assumiu o posto de trabalho, só viu uma outra mulher ocupar o espaço, “mas por pouquinho tempo”.

Eu procuro me impor, cumprir a minha missão, nunca pensar que o outro é mais capaz do que eu. O que ele estudou, eu também estudei; o que ele sabe, eu também sei. 
Maria Luiza Saraiva
Juíza eclesiástica

Irmã Maria Luiza, como é chamada pelos colegas, reconhece que o movimento de Papa Francisco por maior igualdade de gênero na igreja “com certeza não vai ser fácil, porque lá o machismo é muito forte”, mas que a abertura é importante.

“A igreja sempre caminhou ao lado do masculino, mas esse papa tem o olhar de Jesus Cristo: de igualdade. E as irmãs de lá, assim como eu aqui, devem ter essa vontade de fazer a missão delas”, ilustra a juíza.

“Dobro o esforço, conquisto o espaço”

Foto: Kid Júnior

Para Vitória Mendonça, 56, diretora administrativa da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) – instituição cujo cargo máximo, de diretor geral, só pode ser ocupado por um padre –, “a mulher sempre esteve inserida, mas atualmente passa a ter uma relevância maior” nas instâncias da Igreja Católica.

Antes dela, apenas uma outra mulher já havia ocupado a direção administrativa, entre os homens e padres que se repetiam no cargo. Mesmo sem nunca ter sentido qualquer discriminação, Vitória é enfática: “se acho que estou sendo relegada, dobro o esforço, conquisto o espaço”.

O movimento do Santo Papa está vindo para mostrar que a igreja quer essa participação efetiva das mulheres. Aqui na faculdade, nunca senti preconceito pelo fato de ser mulher e estar nessa posição de decisão.
Vitória Mendonça
Diretora administrativa da FCF

A diretora reconhece, porém, que existem dogmas religiosos e que eles não mudarão, mas que a visão sobre as competências femininas deve seguir evoluindo – à medida em que as mulheres mostram o que sabem.

“Essa inclusão vem mostrar que a igreja está aberta, não é preconceituosa, misógina, não mensura as pessoas pelo gênero. Isso abre outros caminhos. Acho que a mulher nunca vai poder ser ‘padre’, por exemplo, mas participa cada vez mais das rotinas diárias da igreja”, pondera.

Projeto Elas

Esta reportagem faz parte do “Projeto Elas”, iniciativa do Sistema Verdes Mares para fortalecer a luta das mulheres, fomentar a valorização e reconhecimento das conquistas e, principalmente, a preservação das vidas delas.

Por meio dos veículos de comunicação, o SVM discutirá temas como desigualdade de gênero, desafios do mercado de trabalho, empoderamento e conquistas femininas, mostrando relatos da vida real, numa programação que segue até dezembro de 2021.  

Diversas ações também serão realizadas em pontos diferentes de Fortaleza, como escolas públicas, onde crianças poderão aprender sobre a importância da vida e da valorização da mulher. Ciclos de palestras, realizadas com o apoio de ONGs e figuras representativas, também marcarão o projeto, que culminará com o lançamento de um documentário especial para a TV Diário e para a internet.

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