Em 2022, 35 denúncias foram registradas; oito em competições sul-americanas
Entrar no estádio de futebol e ser chamado de macaco, ter uma banana arremessada em sua direção, ouvir “Negro não!”. O racismo perdeu o pudor de se manifestar no esporte mais popular do mundo. Em 2022, já foram 35 denúncias até este sábado (28). O número já é metade do registrado em todo o ano de 2019, líder com 70 ocorrências.
Os dados são Observatório da Discriminação Racial no Futebol, que começou o mapeamento quando foi criado, em 2014. Das 35 denúncias feitas até o momento, oito ocorreram em torneios continentais: Sul-Americana e Libertadores. Todos contra torcedores e/ou atletas de times brasileiros: Athletico-PR, Bragantino, Ceará, Corinthians, Fortaleza, Flamengo, Fluminense e Palmeiras.
“O aumento das práticas racista se dá, no meu ponto de vista, por dois motivos: a maior conscientização de jogadores e torcedores. O que antes era visto e tolerado no campo e no espaço do futebol, hoje não é mais. Há torcedores mais atentos para denunciar, jogadores que não silenciam mais. Esse processo faz com que o número de casos e as denúncias aumentem. Por outro lado, temos um momento do Brasil e do mundo onde a intolerância está cada vez maior. Muitas vezes autorizados por discursos de autoridades. Há um aumento da intolerância dentro e fora do futebol”, avaliou Marcelo de Carvalho, coordenador do Observatório.
Na última quarta-feira (25), torcedores do Ceará foram vítimas de atos racistas no Estádio de Avellaneda, em Buenos Aires. A equipe cearense enfrentou o Independiente, em duelo da Sul-Americana. Parte da torcida do Rei de Copas imitou um macaco e xingou alvinegros. Além disso, também arremessaram pedras e outros objetos. O torcedor Rodrigo Castro presenciou o momento.
“Desde antes da gente viajar, a hostilidade da torcida deles foi grande. Nas fotos que o Ceará postava, sempre mandavam mensagens de cunho racista e violento. Dizendo que iam pegar a gente lá... Durante o jogo inteiro: mulher, criança, adulto... O cara que viralizou no vídeo, foi o que pegaram para Cristo. Não foi só ele. Foi muita gente da torcida. Eles viravam para trás e imitavam comendo banana, imitando macaco, chamando a gente de macaco. Isso foi o jogo inteiro. O Ceará fez 1 gol, aí incitou. E quando fez o 2 gol, aí deslanchou mesmo. Jogaram pedra de gelo, sapato, mas graças a Deus não aconteceu nada. Me senti desrespeitado. Não só eu, mas todos que presenciaram”, lembrou.
Outra situação semelhante foi registrada no dia 13 de abril, quando o Fortaleza enfrentou o River Plate, no Monumental. O jogo da Libertadores ficou marcado também por ato racista. Um torcedor do time argentino chegou a jogar banana na direção dos tricolores. O momento ganhou repercussão internacional. Tinga, zagueiro do Leão, chegou a comentar sobre a situação em entrevista coletiva. O atleta cobrou punições mais duras.
“E a gente não pode fazer nada. Se fizer, a gente é punido. E punido severamente por uma coisa que outra pessoa fez pior. Temos que mudar isso. Queremos que sejam mais justas as coisas. Uma justiça seja feita não só aqui, mas no mundo todo. Esperamos que isso não volte a acontecer. Vi que os torcedores foram punidos em cada time lá, que não podem mais frequentar estádio. Mas acho que tem que ser pior, tem que aumentar a multa, prisão. Tem que ser uma coisa pra ninguém mais fazer, entendeu?”, desabafou o atleta.
No jogo da volta, os tricolores prepararam dois mosaicos permanentes como forma de resposta às ações sofridas na Argentina. Os dizeres traziam: “Stop Racism” (para o racismo, em inglês) e “Juntos na Luta”. Quase 50 mil pessoas acompanharam o duelo na Arena Castelão.
“As pessoas e os atletas estão denunciando mais. Antes, um atleta entendia que era parte do futebol ele sofrer racismo. Hoje, um jogador de futebol já não aceita mais, já não tolera… Denuncia! Por mais que muitas vezes a palavra dele seja colocada em dúvida”, disse Marcelo Carvalho, do Observatório.
No duelo cotra o La Guaira, pela Sul-Americana, ainda no dia 3 de maio, a arquibancada alvinegra tratou do tema com uma faixa no Castelão. O pedido era o mesmo: "Por um mundo melhor, sem racismo, sem preconceito."
POSICIONAMENTO
Rivais dentro de campo, Ceará e Fortaleza se solidarizaram um com o outro, além de outras equipes, e repudiaram as ações criminosas.
As práticas discriminatórias se repetiram com Athletico-PR, Bragantino, Corinthians, Flamengo, Fluminense e Palmeiras. Nem o fato de serem flagrados por câmeras inibiu os atos racistas.
“As pessoas racistas, preconceituosas, estão se sentindo autorizadas a cometer esses atos. Também estão vendo que falta punição. Então, tu consegue enxergar que a pessoa que fez o ato antes de ti não foi punida, então possivelmente você não será punido. E aí dessa forma você acaba cometendo esses atos racistas também”, analisou Marcelo, coordenador do Observatório.
PUNIÇÕES
Ainda em abril, após grande repercussão do caso envolvendo tricolores e outros registros, a Conmebol prometeu medidas mais duras contra o racismo nos jogos. A CBF também chegou a se manifestar. O presidente Ednaldo Rodrigues disse estar indignado e preocupado com a situação.
Sobre o último caso, no jogo Independiente x Ceará, a entidade sul-americana informou que vai abrir procedimento e investigar a situação. A Unidade Disciplinar da entidade será a responsável pelo tema, mas ainda não tem prazo para anunciar a decisão.
O Vovô entrou com representação contra o Rei de Copas. O Ministério Público do Ceará, por meio do Núcleo do Desporto e Defesa do Torcedor (Nudtor), enviou ofício a Alejandro Domínguez, presidente da entidade, solicitando informações sobre as medidas a respeito das ocorrências.
A Conmebol tem recebido críticas quando se trata de coibir e punir os casos de racismo em jogos na América do Sul. Para Marcelo de Carvalho, a entidade é peça chave na mudança de comportamento nos espaços futebolísticos.
“É importante porque nem todos os países discutem o racismo como o Brasil. Alguns países ainda entendem isso como parte do folclore e acreditam que o futebol pode ter essas discriminações, essas ofensas, porque fazem parte do futebol. O papel do futebol, nesse momento, é equalizar o debate. É colocar todo mundo no mesmo lugar, dizendo que racismo é crime. Afinal de contas, racismo é crime em todos os lugares. A FIFA tem no código, em todos os lugares o racismo é crime. Não pode, nas competições sul-americanas, ser entendido como parte do folclore. Então, é crucial o papel da Conmebol não só em punir, mas pensar em outros processos de punição e, principalmente, campanhas de ação e conscientização”, concluiu o professor.