A cidade aqui dentro

Escrito por Roberta Souza , roberta.souza@svm.com.br
Legenda: Desenhos que me lembram nuvens e balões de São João habitam o céu da minha residência
Foto: Foto: Roberta Souza

Essa semana comecei a ver desenhos nas telhas aqui do quarto como se estivesse admirando nuvens. É que minha imaginação anda especialmente aflorada após mais de dois meses de confinamento em virtude da pandemia do novo coronavírus. Da última vez que atravessei a BR-116 rumo à sede do trabalho, em março, me despedi do céu daquele percurso sem data para reencontrá-lo. E aqui estamos, ainda sem perspectivas de fazer isso em segurança.

Sabe que nesse tempo todo, não saí de casa nem para comprar pão? É que onde eu moro, se você dá um grito, o dono do mercadinho do outro lado da rua já manda alguém deixar o pedido. Além disso, os aplicativos têm facilitado muito os processos, atendendo boa parte das necessidades de quem pode ficar em isolamento. Sim, porque essa não é definitivamente uma possibilidade para todos, ainda mais numa cidade tão desigual como Fortaleza, onde até manter-se vivo é um privilégio.

Meu enclausuramento não é silencioso. Para falar a verdade, é pelos sons que mais me aproximo da cidade que deixei para trás desde o início da quarentena. Tenho a impressão de que amplifico os barulhos dos carros e motos, pois têm dias que eles me fazem lembrar de avenidas movimentadas, como a Washington Soares às 7h da manhã ou a 13 de Maio às 18h. Saudade de engarrafamento ou de aglomeração dentro do ônibus, eu não tenho. Mas a liberdade de ir e vir sem medo, sim, essa faz muita falta.

Do primeiro ao último cômodo da minha residência, conto com sete vizinhos de parede só do lado direito. Sempre achei isso um exagero, mas agora, além das duas pessoas com quem moro, eles representam toda uma sociedade com a qual deixei de esbarrar nos shoppings, restaurantes, bares, equipamentos culturais e praças. Sei que alguns andam trocando o dia pela noite, outros têm apostado nos vídeos educativos para entreter crianças pequenas, e há ainda aqueles que não desligam a TV e o rádio, sedentos por boas notícias e músicas para acompanhar durante os serviços domésticos.

Costumo me entreter com as discussões que permeiam os diálogos deles, mesmo não sendo diretamente convidada a participar. Outro dia, um casal debatia em alto e bom som se o governador estava certo ou errado em emendar tantos decretos de isolamento. Não chegaram a uma conclusão comum, mas os suspiros finais de ambos os lados evidenciaram uma certeza partilhada: do lado em que estiver a cura ou a prevenção para essa doença que tem levado tantos amores, eles estarão.

Em meio a tudo isso, parece mesmo que criei a minha própria cidade aqui dentro. Da sala de entrada ao quintal dos fundos, vejo todas as regionais com suas divisas imaginárias. O corredor conduz meu percurso imaginário e o celular me aproxima simbolicamente das pessoas que eu encontraria fisicamente durante essa viagem.

Enquanto finalizo estas linhas, chove forte, mas também podia estar fazendo um sol escaldante sobre nós. Gosto de pensar que a mesma chuva que cai aqui ou a fresta de luz a atravessar o telhado da minha casa, feito com as carnaúbas enviadas pelo vovô, tocam igualmente o mar de Fortaleza, do qual estou num espaço-tempo tão distante. Minha imaginação me leva para lá num piscar de olhos. Enfim, hoje e pelos próximos dias, só me resta abrir as janelas (da mente) para mergulhar livre nesse oceano.

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