Sapiranga: bairro com contrastes sociais que saiu da 'pacificação' entre as facções para as chacinas
Segundo uma especialista em Segurança Pública, 'a Sapiranga é um território importante para os acordos e desacordos das práticas de tráfico de drogas'
A Sapiranga foi palco de mais uma matança, em plena celebração de Natal, no último sábado (25). O Bairro de Fortaleza, marcado por forte contraste social, saiu de uma "pacificação" entre facções criminosas para ter conflitos frequentes e ao menos duas chacinas, em um intervalo de seis anos. Segundo uma especialista em Segurança Pública, "a Sapiranga é um território importante para os acordos e desacordos das práticas de tráfico de drogas".
A "pacificação" selada no Ceará entre duas facções - sendo uma de origem carioca e a outra paulista - foi iniciada na Sapiranga, em março de 2015. Reportagem do Diário do Nordeste, publicada no ano seguinte, mostrava que o acordo diminuiu os homicídios em quase 50% em vários territórios da Capital, o que resultou na redução do efetivo policial nas regiões e, consequentemente, em mais liberdade para os criminosos cometerem delitos como tráfico de drogas e roubos de veículos.
Em um vídeo feito no Campo da Leda (que depois viria a se tornar o Campo do Alecrim), integrantes dos dois grupos criminosos comemoraram a "pacificação". "Uh é só na paz! Uh é só na paz!", gritaram os suspeitos, após uma reverência às comunidades que entraram em acordo e aplausos.
O principal articulador do pacto de paz entre as organizações criminosas, segundo as investigações policiais, era Alejandro Juvenal Herbas Camacho Júnior - irmão do principal líder da facção paulista no Brasil, Marcos William Herbas Camacho, o 'Marcola'. Alejandro teria vindo para o Ceará depois de deixar a prisão em São Paulo (onde estava detido com o irmão) e moraria junto da esposa, cearense, em uma mansão na Sapiranga.
Alejandro Júnior terminou preso em uma operação da Polícia Federal (PF) contra a organização criminosa e o tráfico internacional de drogas, em março de 2016. No fim daquele mesmo ano, as facções carioca e paulista acabaram com a trégua de paz nacional e voltaram a guerrear no Ceará, em busca de conquistar territórios rivais. Moradores da Sapiranga relataram tiroteios quase diários.
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Conflitos entre facções e chacinas
A facção paulista foi dando espaço no Ceará para uma facção nativa, formada por dissidentes da primeira. Nos anos seguintes, as organizações criminosas cearense e carioca se digladiaram e dividiram os territórios de todo o Estado, inclusive com um recorde de homicídios registrado em 2017, mais de 5,1 mil casos.
Na Sapiranga, prevaleceu a facção carioca. A rivalidade e a intolerância entre os grupos motivou uma chacina ocorrida no Bairro, em novembro de 2017. Quatro adolescentes em conflito com a lei, que estavam internados no Centro de Semiliberdade Mártir Francisca, foram retirados do estabelecimento à força e executados. As vítimas residiam em bairros dominados pela facção cearense e, como tinham que cumprir as medidas socioeducativas no local, passaram a ser vistos como "intrusos".
Nos anos seguintes, o Bairro intensificou o contraste social, reunindo "ilhas de riqueza" (condomínios e casas de alto padrão) e "bolsões de pobreza" (favelas); ao passo que a facção carioca manteve o domínio do tráfico de drogas e a guerra entre os grupos criminosos arrefeceu de novo, segundo uma fonte da Inteligência da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).
O último levantamento do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos bairros realizado pela Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF), de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) coletados em 2010, aponta que Sapiranga tinha um IDH de 0,34, maior que alguns bairros limítrofes como Lagoa Redonda (0,25) e Sabiaguaba (0,27) e menor que Edson Queiroz (0,35), José de Alencar (0,38), Cambeba (0,52) e Parque Manibura (0,58).
A paz foi interrompida por um novo movimento da guerra entre as organizações criminosas. Segundo a fonte da SSPDS, houve uma dissidência dentro da facção carioca no Ceará, iniciada em Caucaia. A ideia se espalhou para Fortaleza e ganhou força na Sapiranga, onde o novo grupo criminoso começou a cobrar que antigos comparsas também "rasgassem a camisa".
Conforme as investigações iniciais da chacina cometida no Campo do Alecrim (antigo Campo da Leda, mesmo lugar onde teve a celebração da "pacificação"), na madrugada do dia 25 de dezembro último, a cobrança para "mudar de lado" resultou na matança, que teve como autores integrantes do novo grupo criminoso e como vítimas, membros da facção carioca. Cinco pessoas foram mortas a tiros e outras seis ficaram feridas.
"Território importante para os acordos e desacordos"
A socióloga Ana Letícia Lins, da Rede de Observatórios da Segurança, corrobora que "a Sapiranga foi palco de um intenso conflito que tem acontecido em menor e maior escala em outras localidades do Ceará, com especial atenção para Fortaleza e Região Metropolitana", referindo-se à dissidência da facção carioca. "Como a presença das facções e seus conflitos estão pulverizados, o cotidiano de violência é algo constante em várias periferias", acrescenta.
Nota-se que desde o início, quando começamos a ouvir sobre “facções” com maior frequência, especialmente no período da “pacificação” entre 2015 e 2016, que a Sapiranga é um território importante para os acordos e desacordos das práticas de tráfico de drogas. No entanto, o que o último acontecimento nos mostra é que as situações de violência têm perdurado por todo esse tempo."
Ana Letícia analisa que "desde a chacina do Benfica, em março de 2018, foi quebrada a ideia de que esses conflitos só vitimam pessoas ditas 'envolvidas' — o que não é justificativa". Pessoas sem antecedentes criminais, idosos e crianças acabam também sendo mortas.
"A nova forma de fazer o crime utiliza a matança em massa como forma de produzir poder contra um oponente. Esses conflitos continuam vitimando pessoas pobres e/ou negras, moradoras das periferias. A presença da violência armada e os intensos conflitos atinge essa população de forma contundente, restringindo sua circulação e a possibilidade de uma vida digna, além de proporcionar um cotidiano de medo e de precarização da vida", afirma.
Essa é a sétima chacina do Ceará no ano de 2021. "É preciso, frente a isso, questionar o que tem sido feito de forma permanente no campo da Segurança Pública para evitar que pessoas sejam assassinadas em situações como a da Sapiranga. Ano após ano continuamos a repetir que o policiamento de saturação e policiamento ostensivo não resolverá por si só os problemas enfrentados. É preciso investir em inteligência policial e ações de prevenção a essas ocorrências, para que não continuemos a repetir histórias de dor", finaliza a socióloga.