Guerra dos bárbaros e outras guerras
O maior levante indígena contra a opressão colonizadora portuguesa no Nordeste teve fim trágico
Limoeiro do Norte. Na boca de cada braço de rio tem um riacho de sangue. As águas jaguaribanas conhecem dois: o que é vermelho e o outro que, conforme o poeta Demócrito Dummar, é ele mesmo. O poeta escreveu: "O Rio Jaguaribe é uma artéria aberta, por onde escorre e se perde o sangue do Ceará".
Tapuia-Cariri do Norte do Estado: guerra afastou etnia do vale jaguaribano. Foto: Melquíades Júnior
Feito o rio jogando sua riqueza para o oceano, cuja água não se pode beber, viu-se o índio sangrando ao perder suas terras para o colonizador. No Vale do Jaguaribe e arredores, diversas famílias colonizadoras fincaram pé em currais, sendo a pecuária o grande instrumento de povoamento das margens. Ficando entendido que "povo" e, portanto, "gente", eram os que vinham de além-mar.
Antes dos Oliveira, Feitosa, Diógenes, Cunha e Nogueira, as margens tinham Potiguara, Payacu, Tapuia, Jaguaribara, Jaguaruana, Icó e mais quase uma dezena de tribos indígenas. Antes de Portugal, tinha os Janduim, que formavam no Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba uma verdadeira Nação indígena.
Os colonos queriam terras, que, para os índios, são a extensão divina do próprio corpo, elemento de identidade. Perdendo espaço e vendo o extermínio deles próprios e dos "encantados da floresta", índios reuniram-se no maior levante indígena no Nordeste que se tem conhecimento contra o colonialismo português. Não estranha que a historiografia brasileira tenha cunhado a expressão "Guerra dos Bárbaros". Os índios eram "violentos", "ferozes", "truculentos", "ariscos" e muitos outros adjetivos dados aos animais.
A Sua Majestade
Em 1704, a pedido dos fazendeiros, os oficiais da Câmara da Vila do Aquiraz, a primeira do Ceará, escreveram para "Sua Majestade" de Portugal:
"Senhor, os oficiais da Câmara desta vila de Capitania do Ceará se queixam a Vossa Majestade de que os tapuyas bayacus aldeados na ribeira de Jaguaribe da mesma Capitania, roubaram os gados dos moradores daquela ribeira (...) os mesmos tapuyas feriram e mataram com horrendas crueldades muitos daqueles moradores, queimando alguns vivos. Estes bárbaros foram sempre a destruição desta Capitania, reduzindo a tão miserável estado que os moradores daquela ribeira largaram as fazendas por conservarem as vidas e se retiraram para o abrigo desta fortaleza". As ações violentas dos colonos eram sempre colocadas como um revide às "atrocidades" indígenas, nunca como a precursora de conflitos.
O apelo ao rei era latente, já que em 1691, após uma série de batalhas com mortes dos dois lados, à revelia das forças oficiais, o governo de Portugal havia proibido a "guerra justa", que não demorou muito a ser decretada - em 1699, mais de 400 índios Payacu foram mortos numa batalha liderada pelo bandeirante paulista Morais Navarro.
De acordo com o historiador Cicinato Ferreira Neto, a guerra estimulou a construção de casas-fortes na ribeira do Jaguaribe. "Foram também criados regimento de cavalaria, onde passou a se destacar o coronel João de Barros Braga, célebre exterminador de naturais da terra".
A localização das tribos reunidas na Confederação dos Cariris pode ser dada pelas águas: intermediações dos rios Parnaíba (Piauí) e São Francisco (Bahia), abrangendo afluentes por Pernambuco, Paraíba e o Jaguaribe, no Ceará.
Quando o rio presenciou a Guerra dos Bárbaros já era sua terceira, última e mais violenta fase. As águas jaguaribanas já tinham visto sangue humano, de conflitos entre tribos, mas não mar de sangue. A história foi assim diferente desde que lá, em seu encontro com o mar, Vincente Pinzón aportou, antes de Cabral.
Uma parte da história reconhecida, mas preterida na historiografia brasileira. Em 1587, Gabriel Soares de Sousa, em seu "Tratado Descritivo do Brasil", dizia que "nesta boca do ´Jagoarive´ está uma enseada onde navios de todo o porte podem ancorar e estar seguros". Eram as águas na atual Aracati.
Melquíades Júnior
Repórter
O Cumbe e a nova colonização do progresso
Aracati. Onde o rio termina é também quando tudo começa. A zona estuarina do Jaguaribe, onde as águas doces se encontram com as do mar, marcou o início da colonização e de muitos problemas para os que ali já viviam.
A riqueza histórica, com mais de 50 sítios arqueológicos; e diversidade biológica, envolvendo o bioma Caatinga entrecortado por manguezais, não foram suficientes para preservar o Cumbe, onde caranguejos e mariscos perdem vez para o camarão de cativeiro. E a comunidade tradicional entrou em conflito direto com o "progresso".
Dona Francisca Vicentina é uma mãe que vive com orgulho e com medo. Vê a comunidade cada vez mais dividida, desde quando decidiram represar as águas provindas do Jaguaribe para criar enormes tanques para o desenvolvimento da carcinicultura.
Deixou de ir ao encontro das comunidades, representando a Igreja de Senhor do Bomfim, para não ouvir falarem mal do filho. "Teve um que saia por aí mostrando uma arma dizendo que tinha quantas balas fosse preciso pra matar meu menino", conta.
O menino é João, antes João do Cumbe porque quem luta por uma terra faz dela o seu sobrenome. Professor da escola da comunidade, começou a lutar pela preservação do manguezal. Viu-se perdendo a luta quando a ampliação das fazendas de camarão fez praticamente desaparecer os caranguejos, catados pelos homens; e as ostras e os mariscos, colhidos pelas mulheres.
Irregularidades nos empreendimentos e a mobilização social liderada por João do Cumbe causaram o constrangimento da fiscalização. Por conta de uma doença atingindo o crustáceo, a produção de camarão reduziu drasticamente e até algumas fazendas foram desativadas. O mangue foi, então, reaparecendo e, com ele, o caranguejo.
Em outubro, João convidou a comunidade para o lançamento do livro "As Dez Faces na Luta Pelos Direitos Humanos no Brasil". É uma publicação da Organização das Nações Unidas (ONU), em parceria com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos e a Delegação da União Europeia no Brasil. João e o Cumbe são uma das dez faces. O lançamento ocorreu na escola em que, há anos, o menino se fez professor. Do lado de fora, cartazes dando más-vindas. Na escola, João teve o direito de expor o seu livro, mas não de falar. Só mostrar sua face.
Representando carcinicultores do Cumbe, Alexandre Pereira da Silva afirma existir um conflito ideológico contra a carcinicultura, mas que não representaria a comunidade. As fazendas de camarão aumentaram o emprego formal no Cumbe.
Protagonista
A luta para manter a tradição no manguezal
João Luís Joventino do Nascimento, o João do Cumbe, é considerado pela ONU uma das dez novas faces pelos direitos humanos no Brasil. Ameaçado de morte, o professor de escola pública é líder no Cumbe, na zona estuária do Jaguaribe. Sua luta é contra a expropriação territorial para criação de empreendimentos empresariais nas áreas de gamboa.