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O que a política tem a ver com a mudança nos prazos da licença-paternidade no Brasil

Decisão do Supremo Tribunal Federal aponta inércia do Legislativo e evidencia relação intrínseca entre a política e o direito.

Escrito por Bruno Leite , bruno.leite@svm.com.br
Julgamento do STF
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

No último dia 14 de dezembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o Congresso Nacional deverá regulamentar a licença-paternidade em até 18 meses. A Corte reconheceu que houve uma omissão legislativa do Parlamento ao não aprovar uma lei que verse sobre o assunto e derterminou que, caso o prazo estipulado não seja cumprido pelos parlamentares, caberá a ela a definição do o período ao qual o trabalhador terá direito.

Ao chegar a essa decisão, que ocorreu em função de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) ingressada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) em 2012, o Supremo apontou que o afastamento garantido atualmente, de cinco dias, é insuficiente e não reflete a evolução dos papéis desempenhados por homens e mulheres na família e na sociedade. 

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O novo desdobramento do STF, além de provocar os congressistas a se debruçarem de maneira objetiva sobre o tema, lança luz sobre um dos aspectos da atuação política: a relação intrínseca entre o fazer diário dos parlamentares e as mudanças constantes na formas de organização social. 

O direito concedido ao pai para que se ausente do trabalho quando da chegada de um filho ou filha está expresso na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e foi estabelecido através da promulgação da Constituição Federal de 1988. 

De acordo com o que está expresso no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), parte da Carta Magna que reúne um conjunto de normas provisórias, o modelo que continua em vigor deveria sofrer modificações com a implementação definitiva, que ocorreria por força de uma lei complementar. A legislação, entretanto, nunca foi votada no Congresso.

Doutora em Direito Público pela Aix-Marseille Université (AMU) e professora na Universidade de Fortaleza (Unifor), Débora Santana comenta que a omissão apontada pelos magistrados do Supremo se dá justamente por essa não aprovação ao longo dos últimos 35 anos. "A ausência de uma lei que a Constituição determina que deveria existir e não foi feita também traz uma inconstitucionalidade, porque aquela norma fica sem eficácia, ela não tem aplicação", discorre.

Em fevereiro de 2016, os legisladores deram um tímido passo para que houvesse um acréscimo nos dias de afastamento e chegaram a aprovar o Marco Legal da Primeira Infância, que incentivou a extensão do intervalo. 

Sancionado no mês seguinte, o instrumento legal instituiu uma agenda ampla de políticas públicas para crianças de até 6 anos e criou o Programa Empresa Cidadã. Esta última medida possibilitou aos empregados das empresas que aderirem ao programa, a prorrogação da licença-paternidade por mais 15 dias.

Nos dias atuais, pelo que explicou a advogada especializada em Direito do Trabalho, Sara Moura Mota, além de durar menos de uma semana, o benefício concedido aos pais é tido como uma suspensão do contrato de trabalho. "Ou seja, o trabalhador não trabalha mas recebe o salário", frisou a entrevistada. 

Movimentações pós-Supremo

Agora, depois do julgamento da Suprema Corte, pelo menos dois projetos de lei foram protocolados nas duas Casas que compõem o Congresso Brasileiro. A primeira proposição, apresentada no dia 16 de dezembro, é de autoria do senador Jorge Kajuru (PSB-GO). Já a segunda, colocada na sexta-feira passada (22), é assinada pela deputada federal Tábata Amaral (PSB-SP).

A matéria do político goiano versa, dentre outros pontos, sobre a implementação de um salário parentalidade - que seria custeado pela Previdência Social e pago aos trabalhadores durante o afastamento das funções - e a permissão para que haja uma permuta entre pais e mães no usufruto da licença-paternidade ou da licença-maternidade. 

O período de gozo fixado na proposta protocolada por Kajuru é de 120 dias, a serem contados a partir do dia do nascimento ou da adoção da criança ou do adolescente que dependa dos cuidados daquele trabalhador ou daquela trabalhadora.

Ato público organizado em prol da regulamentação da licença paternidade no Brasil.
Legenda: Ato público organizado em prol da regulamentação da licença paternidade no Brasil.
Foto: Lula Marques/ Agência Brasil

O PL de Tábata dispõe que o empregado que se tornar pai poderá usufruir inicialmente de 30 dias de afastamento das suas funções por conta da licença-paternidade, prazo que poderá ser parcelado em dois períodos a pedido do beneficiado. Seria garantido também um salário-paternidade.

A contagem de dias, ao que diz o conteúdo do projeto, teria início na data de nascimento, da adoção ou da obtenção da guarda judicial. O retorno para as atividades poderá ser postergado em função morte da mãe ou pela comprovação de incapacidades físicas e psicológicas dela. 

A paulista também é coordenadora de um grupo de trabalho da Câmara dos Deputados, montado em março deste ano para contribuir para a regulamentação e ampliação do período de licença-paternidade no país. Além dos políticos, o agrupamento reúne ainda órgãos públicos e entidades da sociedade civil.

Em agosto, a instância foi responsável por uma manifestação em prol de um nova regra para que os trabalhadores possam usufruir do direito por mais tempo. O ato aconteceu na mesma época em que o Supremo voltou a julgar a ADO sobre a omissão legislativa do Congresso. 

Assunto multidisciplinar

Pelo que descreveu Sara Moura Mota, a questão julgada pelo STF também dialoga com outras linhas de atuação jurídica que não somente a trabalhista. "Para o Direito do Trabalho, se trata de uma interrupção do contrato de trabalho, durante a qual o trabalhador pode se afastar do trabalho sem prejuízo do salário. Para o Direito de Família, é uma garantia de convívio familiar e de desenvolvimento da paternidade, bem como um direito do próprio filho de ter contato com o pai nos primeiros momentos de vida. Para o Direito Constitucional, se trata de um direito social fundamental", exemplificou. "Daí a importância política de regular e garantir tal direito, com enorme repercussão social". 

O mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor de Direito Constitucional, Yago Nunes, diz concordar com os tentáculos do assunto julgado com as distintas vertentes, mas sustenta que outro domínio também é acionado nessa discussão. "De fato, essa matéria toca diversas áreas sociais, tem uma interface indiscutível com a política, inclusive porque perpassa por uma política legislativa. Estamos falando de uma inércia do Congresso em regulamentar a matéria", falou. 

Estátua do STF
Foto: Marcelo Casal Jr. / Agência Brasil

O fato de se relacionar com múltiplas áreas também é um dificultador para que o Legislativo atue efetivamente. "Essa garantia da licença-paternidade vai implicar em várias áreas do Direito e da Economia. Elas precisam ser estudadas e ter a previsão de situações para que possam encaixar esse pai trabalhador, que vai permanecer por um prazo maior que cinco dias gozando de um salário-paternidade. Temo que isso, muito provavelmente, por não ser uma prioridade agora no Congresso Nacional, que isso vai demorar um pouco", ponderou Débora Santana.

A docente lembrou que, por não ter o caráter vinculante, os membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal não são obrigados a cumprir a determinação da esfera máxima do Poder Judiciário, o que aumentaria ainda mais as chances de que a pauta não entre no raio de apreciação dos políticos lotados na Capital Federal pelos próximos 18 meses. Ao longo dos últimos anos outras ações que analisaram omissões constitucionais produziram sentenças com efeitos semelhantes e foram descumpridas pelo Parlamento.

"A gente regulamentando essa licença-paternidade, eu vou ter uma verdadeira reviravolta em todas as áreas do Direito. Vou ter que passar a pensar o Direito de modo igualitário entre homem e mulher, dividindo funções e responsabilidades".
Débora Santana
Doutora em Direito Público

Efeitos esperados

A participação feminina no mercado de trabalho e a presença de mulheres nas mais distintas esferas de decisão são aspectos que se apresentavam de maneira diminuta há três décadas. A efervescência de tais reivindicações foram consideradas como determinantes para a o julgamento da ADO pelo STF.

Provocado a fazer uma leitura sobre o possível aprimoramento da legislação a fim de acompanhar a dinâmica da vida em sociedade, Nunes afirmou que a Carta Cidadã é "uma força viva". "Do seu texto extraímos normas que devem ser interpretadas a partir da concepção que a sociedade tem de si mesma", analisou. 

"É por isso que eu digo que essa decisão do Supremo Tribunal Federal é fruto de uma alteração da visão que a sociedade tem dos papeis a serem desempenhados por homens e mulheres, inclusive no âmbito do seio familiar e na criação dos seus filhos".
Yago Nunes
Mestre em Direito

Santana revelou que aposta no descortinamento de outros efeitos, sobretudo na participação de mais mulheres na política institucional. "Acho, verdadeiramente, que regulamentando uma licença-paternidade, a política vai ter uma outro olhar para a mulher. Temos uma participação feminina na política ainda muito ínfima. Talvez essa seja uma abertura da participação da mulher mais firme, mais efetiva e em maior número". 

"Certamente, isso vai implicar numa divisão mais igualitária do trabalho. Vai trazer uma maior atenção para essa economia do cuidado, que é exercida exclusivamente por mulheres. Ela vai ter um olhar mais atento da sociedade e do Estado. E vejo, inclusive, a derrubada desse estigma de que esse é um papel biológico da mulher, quando na verdade é social", prospectou. 

Ela mencionou que a inércia vista desde a promulgação do texto constitucional na legislação da temática se deve a um fator estrutural. "A gente tem que fazer a leitura de que é uma instância machista, ocupada majoritariamente por homens. A pauta feminina, nem estou dizendo feminista, não é ainda prioridade para o Congresso", indicou.

Parentalidade em discussão

No fim de agosto, outra movimentação relacionada com a temática foi realizada na Casa Baixa do Congresso, quando a Secretaria da Mulher organizou um seminário em que foi discutida a importância de uma licença mais abrangente, a parental. Ela contemplaria arranjos familiares homoafetivos e famílias que optem pela adoção, por exemplo.

Em 2021, a deputada federal Sâmia Bonfim (PSOL-SP) chegou a ingressar com um PL para instituir a perspectiva do vínculo de parentalidade. A categoria contemplaria as ligações sócio-afetivas, maternais, paternais, de adoção ou outra que resulte no desenvolvimento do papel de realizar a atividade parental. 

A matéria da parlamentar foi aprovada na Comissão de Trabalho da Casa, avançou para a Comissão de Saúde, onde está parada desde dezembro do ano passado. Pelo que prevê a medida, os que trabalhadores que exercem vínculo de parentalidade poderão se ausentar por 180 dias. 

Para Yago Nunes, a admissão da parentalidade é "extremamente relevante e importante", mas também "complexa". No entendimento dele, além de demonstrar um avanço nos debates sobre a licença-paternidade e um ganho para pessoas homoafetivas, ela também abarca as famíias monoparentais.

"Inicialmente, o Supremo Tribunal Federal, numa decisão não tão distante assim, entendeu que o vínculo de paternidade socioafetiva, uma vez reconhecido, não impede o reconhecimento da paternidade resultante do vínculo biológico. Esses reconhecimentos de paternidade trazem consigo todos os efeitos jurídicos que são inerentes. Isso, claro, vai tocar na matéria da licença-paternidade, da licença-maternidade", disse.

Soma-se a decisão anterior, salientou Nunes, o julgamento do STF que concedeu a um pai-solo o direito a licença de 180 dias, assim como é garantido por lei às servidoras federais. Segundo o especialista, a equiparação do benefício que hoje é concedido para mulheres lotadas no Serviço Público Federal foi histórica e expandiu a discussão da parentalidade.

Débora Santana destaca que perante a Constituição Federal, e mais precisamente à luz da interpretação que o Supremo deu a ela, as mais diversas estruturas familiares estão abarcadas. "O reconhecimento do vínculo de parentalidade afetiva não descaracteriza a condição de pai e de mãe". 

Na sua visão, o objetivo maior do Estado ao tomar tal atitude é o de promover uma política voltada para a proteção da primeira infância. "A criança vai crescer amada, reconhecida e segura emocionalmente", disse, enumerando o compromisso assumido na igualdade das relações, com a educação, com o desenvolvimento e com a educação.

Ainda sobre o vínculo, Sara Moura rememora que "o debate não é recente". "A licença maternidade de 120 dias já foi estendida para casais homoafetivos, inclusive com amparo previdenciário, porém só alcança um dos membros do casal. A licença maternidade de 120 dias também pode beneficiar o pai quando a mãe vem a óbito no período de licença. Contudo, ainda há a diferença de tempo de afastamento entre as licenças maternidade e paternidade", acrescentou.

Legislativos cearenses

Embora não estejam no alvo da determinação do Supremo Tribunal Federal, a Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) e a Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor) receberam proposições que aumentam o período de licença-paternidade dos servidores públicos este ano. 

A primeira a tramitar foi a do Legislativo estadual. Em formato de Proposta de Emenda à Constituição (PEC), ela foi apresentada pelo deputado estadual Guilherme Sampaio (PT) em agosto. Ao que diz a justificativa, o intuito da matéria seria o de adequar a legislação estadual à licença-maternidade e licença-paternidade. 

Alece vista de cima
Legenda: A Alece (na imagem) é uma das Casas Legislativas com projetos sobre a licença-paternidade em 2023.
Foto: Divulgação / Alece

Se promulgada pelo Plenário 13 de Março, o afastamento para as mães seria dilatado em 60 dias e, num segundo momento, haveria a regulamentação da licença para os pais. Conforme indicou o sistema de acompanhamento disponibilizado pela Alece, a PEC está na Comissão de Constituição, Justiça e Redação desde 23 de agosto. 

Procurado pela reportagem, o autor esclareceu que a proposta mais recente foi inspirada em outra, apresentada por ele quando exercia mandato na CMFor. "Naquele momento, discutimos um pacote de projetos de valorização dos servidores públicos, um dos quais esse projeto, que é uma reivindicação dos pais servidores e das mães servidoras", respondeu.

A PEC protocolada pelo petista pretende ampliar o período para 30 dias. Na visão do responsável pela apresentação, a concessão do benefício aos colaboradores do Município terá reflexos imediatos, de modo que haverá uma aproximação entre os pais e seus filhos: "Em geral, o papel que culturalmente se atribui ao homem estimula um pouco o distanciamento da figura paterna em relação aos filhos e isso tudo tem efeitos sobre o desenvolvimento socioemocional".

"Estamos aguardado que a Comissão de Justiça emita um parecer a respeito disso e eu pretendo negociar com o governo e com o líder na Assembleia Legislativa para que a gente possa avançar na tramitação da matéria em 2024".
Guilherme Sampaio
Deputado estadual (PT)

O político caracterizou a matéria como um produto da "evolução da nossa cultura política" e do acúmulo adquirido com o "avanço do conhecimento humano nas diversas áreas".

E no início de novembro foi a vez do Executivo da Capital remeter um projeto de lei complementar para conceder um período mais amplo de licença-paternidade aos servidores públicos municipais. O PL foi votado no último dia 12 de dezembro e enviado para o gabinete do prefeito José Sarto (PDT) para sanção. Pelo que estabelece a lei deliberada, o afastamento passaria a ser de 20 dias.

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Líder do Governo na Casa, o vereador Iraguassú Filho (PDT) citou que havia a ideia de que a extensão fosse maior, mas que questões burocráticas impediram a intenção dos vereadores. Pelo que está escrito no Estatuto do Servidor, a licença é de cinco dias, já a Lei Orgânica, depois de uma modificação, passou a mencionar dez dias.

"O prefeito, sabendo da importância da presença do pai, das ações relacionadas com a primeira infância, das conexões afetivas e o apoio no seio familiar, ele mandou essa matéria. Ela foi transformada em projeto autônomo e a gente assegurou uma votação unânime", descreveu. A perspectiva é de que a sanção ocorra nos próximos dias, já que o limite para a sanção ou veto de um projeto de lei é de 15 dias úteis. 

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