'Voto formiguinha' e 'mapismo': as fraudes e polêmicas da época do voto impresso no Ceará
Promotor eleitoral há 26 anos, Emmannuel Girão relata as mudanças na segurança do voto com a modernização da urna eletrônica. Antes, fraudes eram comuns
Depois de 26 anos da implementação do voto eletrônico no processo eleitoral brasileiro, a segurança do sistema de votação volta a ser rediscutida devido a ataques às urnas. No entanto, o que poucos lembram - ou fazem questão de esquecer - é que a mudança ocorreu justamente para pôr fim a fraudes e imprecisões que o modelo arcaico de votação em cédulas permitia.
Como exemplo, não precisa nem ir muito longe. Aqui no Ceará mesmo, no ano de 1988, a primeira eleição municipal de Pentecoste após a promulgação da Constituição provocou burburinhos e até brigas na cidade. Lá, a disputa foi acirrada entre três candidatos: Chagas Lorel, Franzé Crescêncio e Antônio Carneiro. Até hoje, há quem diga que foi roubada.
Como se não bastasse ir votar debaixo de um sol escaldante, respirando a poeira do chão de terra batida, os eleitores ainda tinham que esperar três dias para saber quem seria o novo prefeito.
Até o resultado sair, no entanto, muita água já tinha rolado. Antes mesmo do relógio marcar 8h da manhã, horário em que as seções são abertas, já tinha confusão.
Em um colégio eleitoral do município, por exemplo, um parente de um dos candidatos chegou cedo, quando os mesários ainda estavam se organizando para abrir a seção, entrou na sala sem autorização e rasgou a urna de lona (e olha que o tecido era grosso). Tudo isso para ver se não tinha nenhum voto dentro do equipamento antes da eleição começar. E adivinhe: não tinha.
Em seguida, foi embora como se nada tivesse acontecido. Quem conta a história é o ex-bancário Emmanuel Girão, que atuou como escrutinador naquele pleito, em Pentecoste. Hoje, Girão é coordenador do Centro de Apoio Operacional Eleitoral (Caopel) do Ministério Público do Ceará (MPCE) e relata a sua experiência com eleições no tempo do voto impresso e o que mudou com o voto eletrônico.
Baú da Política Especial
O "Baú da Política" traz um pouco da história de quem participou das eleições antes da urna eletrônica, com experiência em como era feito o processo de totalização dos votos em um período em que os eleitores escolhiam seus candidatos de forma manual, em cédulas. Além disso, eles também apresentam suas vivências na transição entre esse modelo de votação e a urna eletrônica.
Esta reportagem faz parte da série "Baú da Política: Especial Urnas Eletrônicas". A outra reportagem está disponível no link abaixo.
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1988 em Pentecoste
No dia 15 de novembro de 1988 em Pentecoste, distante 80 quilômetros de Fortaleza, em um calor de "rachar o quengo", como se diz em bom cearencês, 14.725 eleitores foram aos locais de votação para escolher seus candidatos ou votar em branco ou nulo. Outros 2.094 se abstiveram. Os dados são do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE).
Chegando aos locais, eles recebiam uma cédula em branco assinada pelo mesário e iam até a cabina de votação, onde preenchiam o número do candidato a vereador e marcavam quem queriam para a Prefeitura. Ao lado dos nomes dos postulantes a prefeitos, havia um quadrado para a marcação de um X - responsável por sinalizar a preferência do voto.
Na cabina, apenas caneta azul podia ser utilizada. Qualquer outra cor invalidava o voto.
Com o encerramento das seções às 17h, era chegada a hora da Justiça Eleitoral lacrar as urnas de lonas com os votos depositados e transportá-las para os locais de apuração. No caso de Pentecoste, um clube da cidade era o cenário da contagem.
Escrutinadores, então, começavam a trabalhar: "primeiro, eles pegavam a urna, derramavam todas as cédulas no chão e contavam todas as cédulas. E eles verificam se o número de cédulas corresponde ao que o mesário consignou", explica Emmanuel Girão.
A partir daí, os impasses começavam - tendo em vista as falhas do sistema. Tinha letra que não era legível, era um número que parecia 1, mas poderia ser um 7, o X fora do lugar e por aí vai.
"Por exemplo, você tem um quadrado com um nome em cima e tem um quadrado com o nome embaixo. O eleitor marcava no meio (entre um quadrado e outro). Então, já chegou a ter uma situação absurda do advogado do candidato querer medir com uma régua se o X estava mais perto do nome do candidato de cima ou se o X estava mais perto do de baixo", relata Girão.
Outra situação inusitada também chamou a atenção do então escrutinador. Ao apurar uma das urnas, notou-se que havia mais cédulas depositadas do que a quantidade de eleitores registrada no caderno de presença, informada pelo mesário.
O mesário, por sua vez, já tinha ido embora, tendo em vista o término do seu expediente para a Justiça Eleitoral ao fim da votação. Sem saber como resolver o impasse, era hora de chamar o juiz eleitoral para decidir o que fazer.
"Houve uma urna que tinha uma quantidade de votos que não batia com o que o mesário consignou (nos cadernos de presenças), e o juiz decidiu pela a apuração da urna (dando validade aos votos, e não ao número do caderno). Um candidato queria que não apurasse. Digamos que o mesário anotou que tinha 396, e tinha 401 votos. Então tinha uma quantidade maior de 5 votos, mas o Código Eleitoral prevê que, nesses casos, se você não tiver uma fraude comprovada, ninguém sabe o que aconteceu. Então, nesse caso você faz a apuração"
Para piorar os ânimos na cidade, depois de três dias de apuração, o candidato que estava na frente foi derrotado. Tratava-se de Chagas Lorel, que foi ultrapassado pelos votos de Antônio Carneiro após o início da apuração das urnas que chegaram dos distritos de Pentecoste. Carneiro saiu vitorioso do pleito com 3.810 votos, contra 3.290 de Chagas Lorel.
Como a apuração levou três dias e as urnas ficavam trancadas nas salas do clube, levantou-se até suspeita de que o local fora invadido na calada da noite, mas nada disso foi confirmado, como narra o ex-bancário.
"Quando começaram a chegar os votos dos distritos, que são distantes, principalmente um distrito chamado de Providência, o outro candidato, o Antônio Carneiro, teve uma votação enorme: de (um total de) 400 votos, ele tinha 380. Então, ele conseguiu reverter, mas o candidato derrotado achava que, na virada da noite, pode ter sido feito alguma coisa, que tinha que ter segurança. (...) Se você for lá, até hoje dizem que essa eleição foi roubada", relembra.
Um crime chamado ‘voto formiguinha’
De lá para cá, Girão atuou em praticamente todas as eleições que sucederam o pleito de 1988. Em 1992 e em 1994, trabalhou como advogado de candidatos no interior fiscalizando o dia da votação. Depois, ingressou no Ministério Público e fiscalizou o pleito de 1996 em Ipueiras, atuando como promotor eleitoral. Em seguida, continuou acompanhando os sufrágios como promotor ou coordenador do Caopel. A exceção foi em 2012, quando foi designado para auxiliar o procurador regional eleitoral, como relata.
Nesse tempo, ele viu muita coisa, inclusive a extinção de fraudes que ocorriam no sistema de voto em papel, motivo pelo qual comemora. Fraudes essas, inclusive, reconhecidas publicamente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Um dos crimes que ocorria com frequência, principalmente no Interior, como conta Girão, era o "voto formiguinha". Funcionava assim: um eleitor ia até a seção eleitoral, recebia a cédula em branco do mesário para preencher e votar na urna, mas, em vez de depositá-la, ele a escondia e saía do local com ela.
Logo em seguida, ia até ao organizador da fraude e entregava a cédula, que de pronto preenchia o voto em favor do candidato por trás do ilícito. Depois, um próximo eleitor, que votava na mesma seção, levava a cédula preenchida e trazia uma nova em branco. O processo seguida até que o último eleitor comprado para fazer parte do esquema depositasse duas cédulas - a que recebia do mesário no local de votação e a outra entregue pelo organizador da fraude.
"O candidato dizia: 'olhe, eu vou lhe pagar, eu comprei o seu voto, mas você coloca essa cédula aqui dentro e vai trazer uma branca para mim. Então, o segundo eleitor do esquema recebe uma cédula em branco, esconde porque o voto é sigiloso, e coloca aquela cédula assinada lá. O primeiro não coloca nenhuma cédula e o último coloca duas. Eles chamavam isso de voto formiguinha"
Dessa forma, quem fazia parte do esquema tinha certeza de que o voto estava sendo depositado no seu candidato.
Com a urna eletrônica, isso acabou, porque os votos ficam armazenados em mídias eletrônicas dentro do equipamento. Ademais, o TSE já provou que não tem hacker que seja capaz de invadir o sistema da urna eletrônica, porque o equipamento não é conectado à internet.
Além disso, todo o sistema da urna é submetido a testes antes de cada pleito, inclusive públicos em que qualquer pessoa pode se inscrever e tentar invadir - desde que apresente um plano de ataque capaz de modificar ou quebrar o sigilo do voto. Até agora, ninguém conseguiu, como explica Lorena Belo, secretária de Tecnologia da Informação do TRE-CE.
Outro ponto importante que a secretária do TRE-CE acrescenta é que os códigos-fontes das urnas estão disponíveis para entidades fiscalizadoras, que inclusive podem acompanhar os testes de ataques às urnas. Nesse rol de entidades, estão todos os partidos políticos, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ministério Público, Conselho Nacional de Justiça, Forças Armadas, universidades, entre outros.
"Elas (entidades) têm a prerrogativa de participar das auditorias, de fiscalização. O que a gente percebe, infelizmente, é uma baixa adesão e baixa participação em todas as oportunidades de auditoria em que são permitidas. Poucos são os partidos políticos ou demais representantes que se fazem presentes. Este ano, nós temos uma inovação: temos três entidades, a USP, a Unicamp e UFPE, que tiveram uma prerrogativa especial de inspecionar o código-fonte fora do ambiente do TSE, nos seus próprios laboratórios", explica.
‘Mapismo’: fraudes na contagem de votos
Outro tipo de fraude comum na eleição que acabou com o voto eletrônico era o mapismo, como conta Girão. Diferente do voto formiguinha, o "mapismo" era praticado por pessoas que apuravam os votos dos escrutinadores e transportavam para uma espécie de mapa fornecido pela Justiça Eleitoral, que era preenchido manualmente.
Se essa pessoa quisesse agir de má-fé, ela poderia alterar a ordem dos votos.
Por exemplo, nas cédulas, um candidato A poderia ter recebido 50 votos e o candidato B, 80, além de 20 votos em branco. Ao todo, havia 140 votos na urna contabilizada pelo escrutinador.
Na hora de colocar no mapa, a pessoa responsável por essa função poderia alterar o resultado, preenchendo que o candidato A recebeu 80 votos, enquanto o B tinha 50, além de 20 em brancos. No fim, vai continuar totalizando os 140 votos das urnas, só que os valores entre os postulantes estariam trocados.
"Os escrutinadores estão fazendo a apuração de uma urna, você não tem a visão global. Então, o resultado daquela urna, era transportado para um mapa. Eram preenchidos os votos a candidato prefeito A, candidato a prefeito B, os votos em branco e os votos para cada vereador. Era uma coisa manual: você pegava o resultado da urna, que os escrutinadores preenchiam e entregavam, e aquilo ali era transplantado para um mapa. Tinha uma pessoa responsável por esse mapa. Se essa pessoa fosse desonesta, ela podia manipular", explica o promotor de Justiça.
Outras fraudes
Além do mapismo, havia fraudes que poderiam ser cometidas pelos próprios escrutinadores. Para a apuração dos votos, era permitida apenas a entrada com caneta vermelha, tendo em vista que as cédulas eram preenchidas com caneta azul ou preta pelos votantes.
Se o escrutinador fosse corrupto, ele poderia entrar com uma caneta de corte preta ou azul escondida e, na hora que estivesse fazendo a contagem, preencher as células em branco em prol do seu candidato, por exemplo. Ou até mesmo rasurar a cédula do outro postulante para invalidar o voto depositado nele, como conta Girão.
Esses crimes não acontecem mais porque, com a urna eletrônica, as mídias com os votos seguem direto para as zonas eleitorais, onde são colocadas no sistema da Justiça Eleitoral capaz de lê-las e publicizá-las em tempo real.
Além disso, antes mesmo das urnas saírem dos locais de votação, ao fim da eleição, são emitidas 5 vias do Boletim de Urna (BU) com as informações sobre os votos em cada candidato.
“Têm que emitir cinco vias dos boletins de urna, obrigatoriamente. Uma dessas vias tem que ser afixada na porta da seção eleitoral”, explica Lorena Belo, acrescentando que uma das vias fica com o presidente de mesa, outra é lacrada dentro da embalagem da urna e as outras são distribuídas aos fiscais de partido.
Então, se alguém tiver dúvida sobre o resultado da urna pode conferir o BU, na via que fica na porta da sala da seção eleitoral ou no site do TSE.
Neste ano, o TSE disponibilizou o aplicativo "Boletim na Mão". Nele, você pode obter cópias dos BUs das seções no seu celular. Para isso, basta ler o QR Code de um boletim de urna disponibilizado na porta da sala de votação, ao final da eleição.
"Na hora que eu emito o boletim de urna, eu estou formalmente publicizando o resultado. O boletim de urna tem um QR Code hoje e isso permite que sejam lidos nos aplicativos próprios de smartphone. A Justiça Eleitoral tem a sua própria aplicação, o Boletim na Mão, que o eleitor pode ver os dados desse boletim de urna no seu próprio celular"
Para conferir mais fraudes absurdas praticadas no tempo do voto impresso, que foram extintas com o voto eletrônico. Para isso, basta acessar a página do TSE com o histórico de fraudes nas eleições, registradas somente com os votos em cédulas. Lá, você vai descobrir os crimes como o da "urna grávida ou emprenhada"; "voto estoque"; "eleitor fósforo"; "fraude cantada", entre outras.