'É antidemocrático e uma distorção bíblica', diz teólogo sobre o uso da fé em disputa política
O escritor Gutierres Fernandes Siqueira aponta ainda que existe uma diferença na estratégia dos candidatos a presidente, que faz a diferença na hora de conquistar o voto evangélico
Não foi algo incomum se deparar, durante a disputa presidencial entre Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com discursos e falas com referências diretas à religião e a símbolos cristãos.
O atual presidente, assim como aliados do mandatário, cita, por exemplo, uma suposta "luta do bem contra o mal" entre ele e o adversário político. Lula, por sua vez, já mencionou em eventos que acha que "meu Deus não é o Deus do Bolsonaro".
O escritor evangélico e teólogo Gutierres Fernandes Siqueira aponta o risco de trazer para dentro do processo eleitoral referências e discursos vinculados à religião.
Autor do livro "Quem tem medo dos evangélicos? Religião e democracia no Brasil de hoje", o pesquisador reforça que o adversário político não pode ser visto como "mal absoluto" e que a analogia de guerra, "seja ela espiritual ou não", pode ser perigosa para a democracia.
"É totalmente antidemocrático e uma distorção bíblica também. À luz da Bíblia, existe uma batalha espiritual, mas o próprio Apóstolo Paulo vai dizer que 'a nossa luta não é contra carne e sangue', não é contra seres humanos", afirma.
Esse discurso religioso costuma ter efeito principalmente entre o eleitorado evangélico – uma parcela disputada entre os candidatos à presidência, mas na qual Bolsonaro possui ampla vantagem.
Para Gutierres Fernandes Siqueira o motivo disso é que a relação entre o presidente e as igrejas evangélicas é vista com mais "autenticidade" por esses eleitores, que acabam vendo, por vezes, "oportunismo" na aproximação da esquerda apenas no período eleitoral.
Confira a entrevista completa com o teólogo e escritor evangélico sobre a relação entre a religião e a política e de que forma isso impacta no processo eleitoral:
Não é novidade a relação entre a religião e as eleições. Mas o que seria possível destacar dessa relação dentro do processo eleitoral de 2022? O que podemos dizer que é diferente ou que se intensificou em comparação a outros pleitos?
Em 2022 tem sido inédito no ponto do envolvimento da igreja evangélica na própria militância política, no sentido de se envolver na campanha. Sempre houve evangélicos e igrejas envolvidas em campanhas eleitorais, isso não é novidade. Mas na intensidade que estamos vivendo em 2022 é (novidade). Ao ponto de igrejas ou pastores, melhor dizendo, ameaçarem pessoas que não votam no (presidente Jair) Bolsonaro de exclusão, de não ter um cargo na igreja, uma função na igreja.
Isso, de fato, é inédito. E, embora 2022 seja inédito na intensidade, (sobre) essa inflexão ou esse nascimento da direita religiosa, podemos colocar o ano de 2010 como ponto inicial.
Foi na eleição de 2010 que o peso do voto evangélico começou a ressoar. Muita gente atribui que a Dilma (Rousseff, ex-presidente) não ganhou no primeiro turno (da disputa presidencial) porque a pauta do aborto apareceu no final (da campanha) do primeiro turno. E ali já era um pouco do barulho do voto evangélico aparecendo.
O Brasil é um país de maioria cristã em que pautas ligadas a essas religiões surgem durante as campanhas eleitorais. Mas é dado sempre um destaque para esse voto evangélico, inclusive com lideranças desse segmento como candidatos. O que explica esse destaque?
Existe uma razão histórica. O movimento evangélico é mais conservador dentro do protestantismo, majoritário também e é um movimento que tem como marca a militância da evangelização. Então, ser evangélico é ser evangelizador. A grande novidade é que, a partir da década de 1980, a força da evangelização passou a ser também uma força de convencimento político. Isso, nos Estados Unidos.
O que estamos vivendo aqui hoje, esse fenômeno da direita religiosa, é uma importação americana. Essa ideia nasceu lá. Até a década de 1980, os evangélicos não tinham esse papel político tão importante nos Estados Unidos, embora a igreja evangélica americana sempre tenha sido grande.
Mas isso acontece, a partir da década de 1980, ainda como reação tardia à Revolução Sexual da década de 1960. Essa reação conservadora gera a direita religiosa. Ainda em um período de Guerra Fria e em um momento em que houve uma guinada conservadora no mundo – (ex-presidente dos EUA, Ronald) Reagan, (ex-primeira-ministra do Reino Unido, Margaret) Thatcher e o próprio papa João Paulo II... Então, esse é o momento histórico em que nasce a direita religiosa.
O que estamos vivendo no Brasil é uma reprodução muito exata do que ocorre nos Estados Unidos há muito tempo, pelo menos 40 anos. Por exemplo, quando (alguém) fala que é evangélico nos Estados, todo mundo sabe que é também republicano e que, provavelmente, não vota nos Democratas. É até engraçado que, nos EUA, acontece de alguém falar que é evangélico por ser republicano e não por frequentar uma igreja evangélica.
É algo que no futuro deve acontecer também no Brasil. Alguém pode dizer que é evangélico porque é bolsonarista, porque o bolsonarismo vai perdurar, ainda que o Bolsonaro perca. Então, a gente está copiando esse modelo já existente lá.
O voto dos eleitores evangélicos já é foco em disputas eleitorais há algum tempo. Mas vemos nessa campanha, principalmente para o segundo turno, alguns discursos que trazem elementos religiosos, como a 'luta de bem contra o mal', falas de que o Palácio do Planalto era "consagrado a demônios" ou que existe uma "missão de Deus". Qual o risco de trazer essas referências religiosas para dentro do discurso político e eleitoral?
É totalmente antidemocrático e uma distorção bíblica também. À luz da Bíblia, existe uma batalha espiritual, mas o próprio Apóstolo Paulo vai dizer que 'a nossa luta não é contra carne e sangue', não é contra seres humanos. É uma luta espiritual que se vence... Inclusive Paulo vai dizer que as armas dessa luta são a verdade, a justiça e o evangelho da paz. Nada a ver com militância estridente.
(Então) Primeiro, é uma distorção bíblica essa ideia. Segundo que, em democracia, não se pode olhar o adversário político como mal absoluto. Ele é um adversário, ele não é um monstro a ser esmagado ou morto. A própria ideia de guerra, seja ela espiritual ou não, seja ela uma analogia ou guerra cultural, tudo isso é totalmente contrário à ideia de democracia.
Embora eu defenda que os evangélicos não são uma ameaça à democracia por si, porque infelizmente temos uma longa tradição autoritária no Brasil, que nasceu bem antes dos evangélicos. Esse tipo de discurso é uma "santificação" do autoritarismo que já temos no nosso País.
Apesar de não ser evangélico, o presidente Jair Bolsonaro possui força eleitoral nesta parcela do eleitorado. O ex-presidente Lula também tem tentado conquistar esses eleitores, inclusive fez uma carta aos evangélicos. O que explica a força do Bolsonaro nesse segmento e quais as dificuldades do Lula em crescer entre evangélicos?
Começando pelo Lula. A bem da verdade, o PT e a esquerda de um modo geral, especialmente a esquerda universitária, nunca se interessou pela religião. E quando ela tem esse interesse apenas em momentos eleitorais já passa para o religioso que isso é oportunismo. Que só está buscando aproximação por uma necessidade de voto.
O Bolsonaro, por mais críticas que se tenha a ele, realmente acredita nessas pautas. Ele busca essa aproximação porque ele acredita e ele já demonstrava apoio a essas pautas quando ele era deputado e se aliava na bancada evangélica, mesmo não sendo evangélico, na década de 2010. Nesse sentido, o Bolsonaro soa para o evangélico como alguém mais autêntico. A palavra-chave é autenticidade.
Outro ponto é que o bolsonarismo como movimento é um grupo que consegue reunir muita gente ressentida. Isso é curioso. Todos que olham para elites – seja elite intelectual, econômica ou financeira – olha e pensa: ‘eu não faço parte, porque essas elites são más e não me querem ali’. E ele (bolsonarismo) consegue reunir esses grupos.
E há, no meio evangélico, um discurso ressentido. Por quê? A igreja evangélica foi perseguida, inclusive fisicamente, até a década de 1960 no Brasil. Há muitos relatos históricos nesse sentido, especialmente nos interiores do Brasil. Então, isso ficou na alma evangélica. E depois houve essa incompreensão da elite cultural brasileira ao olhar o evangélico sempre como alguém inferior intelectualmente.
Esse ressentimento ficou marcado e o Bolsonaro expressa isso: 'está aqui alguém que está no Poder e presta atenção em vocês. Ninguém prestou atenção em vocês'. Um discurso comum de pastores que apoiam Bolsonaro é 'os antigos Governos nos recebiam, mas em salas escondidas, eles tinham vergonha de aparecer ao nosso lado e o Bolsonaro não tem'. Realmente, esse é um dos motivos do Bolsonaro ter tanta força entre os evangélicos.
E qual a sua análise sobre estratégias como a "Carta aos Evangélicos" divulgada pela campanha do Lula? Isso é suficiente ou ainda falta um maior entendimento para chegar a esses grupos?
Eu acho que o objetivo do PT é mais estancar a sangria. Eu acredito que nem eles mesmo têm esperança de reverter o quadro entre os evangélicos. Até porque isso é uma construção de longo prazo. Por exemplo, na reunião em que o Lula lançou essa carta, a maioria dos pastores que estavam ali já são conhecidos por uma postura progressista. Ele não agregou nenhum nome relevante do conservadorismo evangélico nesse apoio a ele.
É meio falar para a mesma bolha. Há uma bolha evangélica, religiosa que também vota no PT e ele está falando para essa bolha e dando algum tipo de ferramenta e justificativa para essas pessoas. (...) É mais uma ferramenta de comunicação, mas não vai ter nenhum efeito prático de reverter votos nas igrejas evangélicas, porque, mais uma vez, só surge às vésperas do segundo turno, mais uma vez pode soar oportunista.
Como tudo isso (as referências religiosas, as crenças e o histórico da igreja evangélica) é colocado por atores políticos ou por lideranças religiosas dentro desse processo eleitoral?
Quem é político... E o Bolsonaro é um político nato, tem aquele talento natural para a política e consegue jogar com o medo. E o medo vende, o medo vende muito bem. E aí está a esperteza do Bolsonaro. Como aproveitar um grupo cada vez mais crescente, um grupo popular e que tem uma força incrível no país e que, ao mesmo tempo, tem uma série de medos.
Se isso é intencional ou intuitivo, é difícil julgar. Ou se é uma mistura dos dois. O grande aproveitamento das figuras políticas é esse: o medo. Se consegue mobilizar mais gente pelo medo do que por um projeto. Isso é claro, não é um defeito brasileiro, é algo da natureza humana. Eu vejo que esse é o ponto-chave que os políticos aproveitam. (...) E nesse sentido, a direita tem mais sucesso do que a esquerda em colocar medos ou pelo menos lembrar dos medos que as pessoas têm.
E aí, uma crítica que faço à esquerda brasileira é que, às vezes, parece que acha que mora no norte dos Estados Unidos. Tem pessoas necessitando de saneamento básico, gente precisando de um mínimo de saúde e o pessoal está discutindo linguagem neutra. E se perde um tempo enorme com esse tipo de debate. É aí que grupos mais conservadores, principalmente na extrema-direita, conseguem sucesso, porque eles falam com o mundo real das pessoas, com seus medos reais.
O Brasil é um país laico em que a liberdade religiosa é prevista como direito na Constituição Federal, mas onde também existe essa ligação entre religião e política. Até onde isso é saudável e onde isso ultrapassa e pode colocar em risco a democracia? Qual é o limite?
Primeiro, sempre tem que entender que Estado Laico não é um estado antirreligioso ou que queira colocar a religião no armário. Às vezes, há pessoas que têm essa concepção de estado laico, como se o religioso não tivesse direito a ter voz na política. Esse é um pensamento autoritário.
Mas levando em conta que a linha que separa o exagero do uso da religião na política e o uso saudável é uma linha fina. É muito difícil, muitas vezes, ver o limite.
Penso que, especialmente para democracia, o desafio que temos, até por ser um país religioso, é que o Estado nunca caia na tentação de priorizar qualquer grupo religioso. Isso não pode acontecer.
Nesse sentido, o papel do Estado é colocar o estado laico como um valor a ser ensinado. O Estado tem um papel educacional importante, e o Brasil vem falhando nesse sentido, de colocar como pauta, inclusive escolar, a importância dos valores da democracia. O que é ser democrata? Por que a democracia é importante? Por que o estado democrático de direito, a liberdade de crença, a liberdade de pensamento são valores importantes para a sociedade?
Ou a gente faz essa educação, e o Estado precisa fazer isso por meio das escolas, ou vamos continuar formando esses pensamentos difusos por meio de redes sociais, da internet, que não é uma boa ferramenta de estudo. O Brasil tem que entender, como nação, que a democracia não é algo natural, que cai de cima para baixo.
É algo que precisa ser constantemente ensinado, porque a própria natureza humana gosta de figuras de autoridade, gosta de figuras autoritárias. (...) A gente só vai ter um futuro democrático estável se isso virar pauta nacional. E o Estado tem o poder fazer isso por meio da educação.