O legado do último dos coronéis: Conheça a trajetória política de Adauto Bezerra

Ex-governador e deputado federal e estadual, Adauto Bezerra era o último “coronel governador” vivo, e atravessou, na vida pública, períodos que foram da pré-Ditadura à redemocratização

Escrito por Flávio Rovere ,
Adauto Bezerra tinha 94 anos
Legenda: Adauto Bezerra tinha 94 anos
Foto: Natinho Rodrigues

A morte de Adauto Bezerra representa um marco de passagem na história política do Ceará. Personagem que integrou quadros importantes no Executivo e no Legislativo, nas esferas estadual e federal, era o último representante vivo da tríade de coronéis governadores, composta ainda pelos também militares César Cals e Virgílio Távora

Seu legado é o de um representante, no Ceará, do nacional-desenvolvimentismo do Regime Militar, que daria lugar, nos anos 1980, a um projeto político mais ligado à iniciativa privada, em transição também considerada essencial para entendermos as relações de poder no Estado. 

Fato é que, até o fim vida, mesmo que de forma um tanto distante das disputas políticas mais diretamente, manteve-se como figura com bom trânsito inclusive entre adversários de outros tempos.

Conversamos com cientistas políticos para tentar aprofundar o real legado de Adauto como homem público no Ceará. 

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Formação e entrada na política

Nascido em Juazeiro do Norte em 3 de julho de 1926, Adauto Bezerra é oriundo de uma família tradicionalmente rica e poderosa do Cariri cearense. Formado aspirante a oficial de artilharia pela Escola Militar do Realengo, em 1949, no Rio de Janeiro, entraria para a política, de fato, em 1958, eleito deputado estadual pela União Democrática Nacional (UDN), cargo para o qual seria reeleito em 1962.

Voltaria a se reeleger em 1966, já pela Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido que dava sustentação ao Regime Militar. Foi eleito para a Assembleia Legislativa do Estado para mais dois mandatos, tendo presidido a Casa por duas oportunidades e deixando os quadros do Legislativo estadual no início de 1975, já com a patente de coronel. 

Era a transição de Adauto para o poder Executivo. No ano anterior, indicado pelo presidente da República, Ernesto Geisel, foi eleito governador do Estado pela Assembleia, vencendo o candidato apoiado pelo então governador César Cals, que, à época, tinha como vice seu irmão gêmeo Humberto Bezerra. Adauto deixaria o cargo em 1978, renunciando para concorrer ao Senado, mas, por divergências dentro da Arena, principalmente com Virgílio Távora, acabaria disputando e ganhando vaga na Câmara Federal. 

Nacional-desenvolvimentismo 

Cientista político do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC), Uribam Xavier destaca que, embora de posição política conservadora e de sustentação local à Ditadura, Adauto não era uma figura de viés político autoritário. 

“O Adauto Bezerra foi muito mais vinculado a uma ala desenvolvimentista do Regime do que uma ala do golpe dentro do golpe”, diz o professor, utilizando a expressão comumente relacionada a expedientes antidemocráticos como o Ato Institucional Nº 5, decretado em 1968. 

No período em que Adauto foi governador do Estado, Uribam destaca, entre as obras que marcaram a gestão, a construção do Interceptor Oceânico, projeto de saneamento básico que implementou a interligação de esgotos e cursos d’água entre os riachos Pajeú e do Jacarecanga, na Capital.  

Embora Adauto venha de família com tradicional poder no meio rural, o cientista político destaca a figura do “Coronel” por outra abordagem. “Ele não era aquele coronel tradicional, latifundiário, que vem daquela tradição estudada pelo Nunes Leal (Victor Nunes Leal, pesquisador mineiro), porque a posição econômica do Adauto Bezerra no Ceará era até mais avançada que a do Tasso do ponto de vista capitalista”, se referindo à sua atuação no sistema financeiro, já que a família Bezerra era proprietária do Bicbanco, Banco Industrial do Ceará. 

Aliança dos Coronéis 

A menção a Tasso Jereissati faz referência a um importante marco na trajetória política de Adauto Bezerra. Eleito vice-governador de Gonzaga Mota (entre 1983 e 1986, período em que voltaria a ocupar ocasionalmente a cadeira de chefe do Executivo estadual), já pelo Partido Democrático Social (PSD), Adauto veria o antigo aliado apoiar a candidatura de Tasso ao Governo do Estado na eleição seguinte, em coalizão que também contava com o apoio de Mauro Benevides, presidente estadual do PMDB, e de partidos de esquerda, como PCdoB e PCB. 

Para a disputa, em 1986, Adauto, então no Partido da Frente Liberal (PFL), formaria a chamada “Aliança dos Coronéis”, em que contou com apoio de Virgílio Távora e César Cals, base que se fragilizaria em demonstrações de antigas divergências entre os três. O pleito se tornou simbólico, ao trazer para a campanha, aos olhos do eleitorado, a visão de que aquele era um confronto entre antigas oligarquias e um projeto de renovação, personificado por Tasso Jereissati, que, amparado por setores industriais do Estado, obteve expressiva vitória nas urnas, com 61,46% dos votos, contra 35,25% de Adauto. 

Impacto negativo 

Autora do livro Família, tradição e poder: o(caso) dos coronéis”, a cientista social do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem), da UFC, Auxiliadora Lemenhe, destaca que o Acordo dos Coronéis teve peso “muito negativo” para a figura política de Adauto.

“A política se faz no embate, no diálogo. Como o adversário dele também pegou essas características dele como coisas superadas, que não cabiam mais no Brasil nem no Nordeste, um discurso de Nordeste já desenvolvido, que não era mais aquele das oligarquias, para ele isso reforçou uma imagem de prestígio a ser superado por forças modernas, dinâmicas, mais antenadas com o avanço do capital”, analisa. 

Apesar de ambos serem personagens com origens familiares de elite, Auxiliadora afirma que Tasso soube explorar bem o discurso de renovação, vindo do empresariado urbano. “O que estava em disputa naquele período não era tanto alguém que era expressão, representante das Forças Armadas. Não era isso. Na verdade, ao destacar sua condição de empresário, homem moderno, ligado a instituições de representatividade da corporação empresarial, o Tasso destacou o discurso de ‘eu sou o moderno e ele é o coronel’. Coronel das Forças Armadas, mas coronel também no sentido mais denso do termo, como o que faz política interiorana, que manda e desmanda”, diz a pesquisadora ao avaliar o discurso de Tasso na disputa. 

Auxiliadora Lemenhe lembra de uma expressão que se tornou emblemática na campanha. “O Adauto dizia assim: ‘Te conheço, Ceará’. Para a oposição, isso era um prato cheio”, se referindo ao significado de “velha política” que poderia ser extraído da expressão. “Penso isso entusiasmou o eleitorado de Tasso Jereissati, porque na nossa cultura a modernidade sempre tem um sentido positivo, e a tradição já teve, mas naquela época já não tinha tanto, demonstrava alguém fora do tempo, fora de época", pontua. 

Diferenças superadas 

Apesar do embate definidor para a trajetória dos dois, Tasso Jereissati se pronunciou neste sábado, apontando Adauto como “uma das personalidades mais importantes do Ceará no século passado” e reconhecendo boa relação entre ambos.“Sua atuação sempre muito ligada aos grandes interesses e demandas do interior do Estado. Sua ligação forte com a população do interior o fez se firmar como um homem respeitado e querido em todo o Estado. Tive sempre uma excelente relação com ele. Apesar de nossas disputas políticas, nunca demonstrou qualquer tipo de ressentimento ou mágoa. Ao contrário, sempre a cordialidade, a educação e a generosidade foram seu traço mais importante”, disse o senador. 

Fim da trajetória 

Em 1990, Adauto Bezerra ainda seria designado pelo presidente Collor de Melo para o comando da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), mas a derrota nas urnas em 1986 seria a última tentativa para um cargo eletivo. Uribam Xavier relembra que, como banqueiro, Adauto ainda permaneceria algum tempo na política. 

“O Adauto apoiava campanhas de praticamente todos os partidos, usando o critério do posicionamento que cada um tinha nas intenções de voto. Se o partido tinha 5%, ele leva 5% do caixa (reserva destinada especificamente para campanhas). Se tem 30%, leva 30%. Era um critério que alguns empresários adotavam para financiamento de campanha que era mais ou menos o seguinte: quem ganhar, eu estou de bem, quem não ganhar fica com uma relação de dependência”, explica o cientista político. 

Apesar da atuação nos bastidores, Adauto optou por se manter discreto dentro do cenário estadual. “Quando ele sai da política, é um homem que não emite mais opinião sobre o mundo político. Você tem uma ausência dele, praticamente como se tivesse se recolhido à sua vida privada e aos seus negócios. Foi um homem que entendeu que o tempo dele tinha passado. Acho que muitos políticos não entendem que chegou o seu fim, e às vezes saem da política de uma forma não honrosa, às vezes até demonstrando decadência”, argumenta. 

Aparições políticas 

Apesar da discrição, Adauto Bezerra permaneceu com aparições políticas pontuais. No ano passado, compareceu a evento de Capitão Wagner (Pros), durante a campanha para a Prefeitura de Fortaleza. Hoje (3), o deputado federal escreveu no Instagram: “Tive a honra de contar com a sua presença e apoio em nossa campanha de 2020. Nosso último registro foi este, em outubro. Grande homem público que fez história em nosso Estado. Aos 94 anos nos deixa, vítima de Covid-19. Aos familiares e amigos nossas condolências e nosso verdadeiro pesar pela sua partida”.  

Adauto fazia parte do Conselho de Governadores do Ceará, comitê criado no ano passado e presidido pelo governador Camilo Santana, contando, ainda, com os ex-governadores Cid Gomes, Ciro Gomes, Tasso Jereissati, Lúcio Alcântara, Gonzaga Mota e Chico Aguiar. A previsão era de dois encontros por ano, mas o grupo não chegou a se reunir. 

 

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