Passado resistente
Sou de uma geração que, em poucas décadas, assistiu e continua a assistir vertiginosas, velozes transformações com a passagem do tempo. Lembro-me, por exemplo, de quando era comum encontrar, em cada bairro de Fortaleza, profissionais especializados no conserto dos mais variados tipos de objetos. Havia, por exemplo, o técnico que recuperava aparelhos de TV defeituosos. Levávamos o televisor à casa daquele especialista (ou este vinha à residência do(a) cliente), que verificava o problema e substituía as peças deficientes, devolvendo-nos o eletrodoméstico em perfeitas condições mediante justo pagamento por seu trabalho.
Fui testemunha de várias dessas visitas. Também encontrávamos facilmente os que consertavam ventiladores, os sapateiros que trabalhavam em suas próprias casas ou em pequenos estabelecimentos, as pequenas bodegas ou mercearias que atendiam os moradores das proximidades – isto, antes do advento dos pequenos mercados de bairro ou dos grandes supermercados, coisa hoje comum. E aqueles pequenos comércios eram identificados pelos nomes de seus donos, outro dado interessante! No Jardim América, bairro onde residi durante dezessete anos, tínhamos, por exemplo, o “botequim do Fanhico”, a “mercearia do Edmar” ou ainda as do Raimundo, do “seu” Antônio e do “seu” Geraldo. Ali comprávamos os gêneros mais básicos, até mesmo o pão do café da manhã, ou o meio pão, enrolado num simples papel de embrulho. Coisas de um passado que não volta mais, mas que teimo em relembrar, por ter sido marcante, simples e muito presente ainda na memória.
Mas, apesar do tempo que passa, alguns vestígios de minha geração ainda resistem, ainda vivem. Mesmo na contemporaneidade, em que eletrodomésticos são mais descartáveis do que nunca, gerando “montanhas” de lixo eletrônico, problema grave já em muitos países, há quem recupere tanto os aparelhos de TV de tela plana ou os de tubo que muitas pessoas ainda possuem. Há, também, o sapateiro que, em sua lojinha humilde e sem beleza, dá vida nova a sapatos, malas e outros objetos do gênero. Ou aquele que, também numa pequena loja, conserta todos os tipos de ventiladores, antigos ou novos. Essas pessoas atendem, respectivamente, pelos nomes de Henrique, Maurício e Cícero.
Resistem à passagem do tempo. Possuem boa clientela e trabalham ali, no bairro Amadeu Furtado, numa série de lojinhas conjugadas. É um raro privilégio para os moradores das imediações. Há décadas ali estão. Com seu trabalho e a clientela conquistada e permanente, enfrentam com galhardia, experiência e habilidade as mudanças impostas pela modernidade que, ao meu ver, nem sempre tem sido tão positiva assim. Permanecem oferecendo seu trabalho contínuo à coletividade, mantendo ainda o velho hábito que tínhamos em outros tempos, de procurar por seus bons serviços. Que essas pessoas, tão típicas e importantes no contexto de uma Fortaleza que não volta mais e hoje tão raras em nosso cotidiano, possam ainda ser valorizadas por muito tempo. Para elas, esta singela homenagem e reconhecimento.
Gilson Barbosa é jornalista