A humanidade sufocada

Escrito por Sávio Alencar , salencarlimalopes@gmail.com

“Quem poderia distinguir nossos rostos?”, pergunta-se Primo Levi (1919-1987), judeu italiano que sobreviveu a Auschwitz, ao relembrar seus dias no campo de concentração, onde homens e mulheres, submetidos a uma rotina de atividades degradantes, viam-se despossuídos das condições mais básicas de humanidade. “Os personagens destas páginas não são homens”, diz ele. E continua: “A sua humanidade ficou sufocada, ou eles mesmos a sufocaram, sob a ofensa padecida ou infligida a outros”.

Deportado para o campo em fevereiro de 1944, onde permaneceu até janeiro de 1945, Primo Levi consagrou-se como o autor de “É isto um homem?”, de 1947, um dos primeiros relatos em primeira pessoa daquele período nefasto do século XX, que o jovem químico conheceu de perto quando ainda não passava dos 24 anos de idade. O livro, hoje um clássico da literatura de testemunho, radiografa a dinâmica dos campos de extermínio na Alemanha.

Na máquina de triturar subjetividades que era o campo, italianos, poloneses, húngaros, ingleses etc. reduziam-se a um denominador comum. Nus, sozinhos e desconhecidos, eram todos “Kazzet”, “substantivo neutro singular”, observa Levi, para designar aqueles que estavam no KZ, “Konzentrations-Zentrum”.

Aliás, em “É isto um homem?”, reflexões sobre a linguagem dão lugar a passagens do livro que comprovam a habilidade literária do autor, como esta, na tradução de Luigi Del Re: “Se os Campos de Extermínio tivessem durado mais tempo, teria nascido um nova, áspera linguagem, e ela nos faz falta agora para explicar o que significa labutar o dia inteiro no vento, abaixo de zero, vestindo apenas camisa, cuecas, casaco e calças de brim e tendo dentro de si fraqueza, fome e a consciência da morte que chega”.

Porém, nem tudo é dor e sofrimento. Primo Levi também revisita momentos em que a bondade era possível, como quando fala de Lourenço, um operário italiano externo ao campo, que lhe conseguia comida e outros favores: “Lourenço era um homem; sua humanidade era pura, incontaminada, ele estava fora desse mundo de negação”. Levi devia a ele o principal: “Graças a Lourenço, não esqueci que eu também era um homem”.

Sávio Alencar
Editor e pesquisador de literatura

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