Transplantes de órgãos caem pela metade durante pandemia e 23% dos potenciais doadores tiveram Covid

No Ceará, meses de abril e maio tiveram maior impacto nas equipes de cirurgiões nos procedimentos com coração, pulmão, rins, córneas e fígado

Escrito por Redação , metro@svm.com.br
Legenda: No Ceará, houve queda de 48% de transplantes realizados no primeiro semestre, segundo a Sesa
Foto: Fernanda Siebra

Enquanto a expressiva demanda por saúde surge dos pacientes infectados pelo novo coronavírus no Ceará, as salas de transplantes de órgãos registram queda de 48% dos procedimentos no primeiro semestre deste ano. Somado à problemática, 23% dos doadores potenciais não puderam concretizar as cirurgias devido à doença pandêmica. De março a junho, foram notificados 117 doadores disponíveis, mas 27 deles receberam diagnóstico positivo para a infecção do novo coronavírus após a realização do exame RT-PCR.

Os dados foram obtidos pela reportagem por meio do Registro Brasileiro de Transplantes (RBT), divulgado nessa quarta-feira (12), e do controle feito pela Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa).

Diagnosticado com ceratocone, doença ocular que compromete a córnea, a visão de Jairdson Feitosa foi ficando turva aos 16 anos, pelo problema que começou com uma coceira insistente nos olhos. Há dois meses ele é um dos pacientes no Ceará que necessita de um transplante. E urgente: num dos olhos, a doença já comprometeu 90% da capacidade de enxergar. No entanto, o jovem ainda não tem previsão de quando isso poderá ocorrer, já que a pandemia do coronavírus impactou diretamente na realização dos procedimentos médicos.

Nesse contexto, o Sars-Cov-2 suspendeu o bom índice que o Ceará vinha alcançando na realização de transplantes de órgãos sólidos. Se no primeiro semestre de 2019, o Estado atingiu 26,9 doadores por milhão de população (pmp), em 2020 o índice caiu para 15,8 pmp. Em números absolutos, foram 122 doadores efetivos em 2019 contra 72 neste ano - uma redução de 41%, como dimensiona o (RBT), elaborado pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).

Segundo a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), o período contabilizou 48% menos transplantes. Em seis meses, foram realizados 396 transplantes no Ceará, a maioria (212) de córnea. No mesmo período do ano passado, foram 762 procedimentos, sendo 426 de córnea. Os números da ABTO sinalizam 380 transplantes em 2020 e 737 no mesmo intervalo, indicando o mesmo percentual de variação.

No entanto, conforme o RBT, no período de abril a junho foram realizados apenas 41 transplantes no Estado. O médico José Huygens Garcia, presidente da ABTO e chefe do Serviço de Transplante Hepático do Hospital Universitário Walter Cantídio (Huwc), aponta que as principais causas foram a lotação dos hospitais, UTIs sem vagas e comunicação difícil com as famílias para autorizarem as doações de órgãos.

Com a interrupção dos serviços de coração, rins e pulmão nos meses de abril e maio - os picos de casos de Covid-19 no Estado -, houve represamento de transplantes. Hoje, 983 pessoas estão na fila de espera, a maioria esperando por novos rins. "Os pacientes da fila do transplante renal vão ficar acumulados em clínicas de hemodiálise. Os de fígado, coração e pulmão podem evoluir para óbito porque não há tratamento alternativo", explica Huygens Garcia.

A coordenadora da Central de Transplantes do Ceará, Eliana Barbosa, salienta que transplantes de córnea e fígado foram mantidos mesmo na pandemia. Para isso, a equipe cearense foi a primeira no País a estabelecer a testagem do novo coronavírus nos doadores para garantir a segurança do procedimento - medida implementada pelo Ministério da Saúde posteriormente. Os pacientes receptores também passam pelo exame. "As notificações caíram e alguns fatores justificam essas quedas, como o número de acidentes que caiu nesse período, fora isso, alguns doadores positivaram, de março a junho, em 23% das notificações", acrescenta.

Desde junho, avalia ela, o Estado ensaia uma retomada gradual dos procedimentos, mas no período mais crítico, nos meses de abril e maio, a imagem da colaboração dos parentes dos doadores ficou registrada. "A solidariedade das famílias se manteve presente, tivemos algumas situações em que as famílias quiseram doar, mas infelizmente o doador estava com o vírus presente, casos assintomáticos. O povo cearense, mesmo diante de situações difíceis, salvou vidas ou deu qualidade de vida", reitera Eliana Barbosa.

Percurso

Pelo menos 32 pacientes do interior do Estado são acompanhados pela Organização Renal do Cariri, como dimensiona o representante, Haroldo Barbosa. "Os pacientes que estavam na fila (antes da pandemia) saíram porque os exames não puderam ser realizados, mas foram convocados e estão voltando para permanecerem na fila", destaca. Há quatro anos os associados do grupo precisam vir a Fortaleza para realizar os transplantes renais diante da indisponibilidade do serviço nos municípios de origem, localizados no Sul cearense.

Esse deslocamento tem o desgaste físico ampliado pela falta de estrutura para acolhimento dos pacientes e, por isso, o grupo resolveu alugar uma casa na Capital para atender aqueles que precisam realizar exames ou a cirurgia esperada. "Uma das dificuldades grandes que nós temos é o apoio em Fortaleza, que eles estão tendo, mas não é totalmente grátis porque nós não temos ajuda de nenhum município", pondera Barbosa.

As marcas do novo coronavírus ficam naqueles que não conseguiram superar a doença e no emocional de quem acompanha de perto o percurso para conseguir um transplante de órgãos no Ceará. "Nós perdemos amigos para a Covid-19, quatro amigos que infelizmente não conseguiram resistir, e deixa a turma em pânico. Tem um medo grande. A grande parte das pessoas está realmente preocupada", reflete.

Já a família de Jairdson Feitosa, enquanto espera um transplante, criou uma vaquinha online para custear o tratamento do outro olho, 60% comprometido, orçado em cerca de R$ 12 mil. "Não estamos conseguindo fazer pelo SUS porque o SUS parou por causa da pandemia, e nos bancos de córnea não têm para fazer a cirurgia dele", lamenta o pai, Jair Feitosa, que é deficiente físico e sustenta a família com um salário mínimo.

Processo

Após a identificação dos potenciais doadores, com a realização dos testes de morte encefálica, o processo segue com a comunicação de morte aos familiares e com a notificação aos profissionais responsáveis pela procura de doadores. A Central de Transplantes é informada e inicia a logística da doação com a entrevista familiar para autorização da doação. Caso concretizada, seguem-se os demais procedimentos. Durante todo esse processo, é realizada a manutenção do potencial doador.

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