O que dizem as religiões sobre a doação de corpos
Diferentes visões de mundo ajudam a entender a relação das pessoas com o corpo após a morte e explicam o pensamento corrente sobre o uso de cadáver para estudo
Toda sociedade celebra seus mortos. De formas diferentes, os povos encontram uma maneira de ritualizar o fim da vida, de marcar a despedida do próximo, de saudar o que, dependendo da crença, está por vir. O corpo, mesmo inerte, não é uma "coisa", enfatiza o antropólogo Martinho Tota, professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC).
"O corpo nunca é algo descartado. Isso porque existe a dimensão afetiva, a dimensão relacional do morto com os seus entes queridos", explica. "Nas mais variadas cosmologias, a morte nunca significa uma total separação entre a imagem do morto e o corpo. Na época do homem de Neandertal, vestígios materiais deixados há 30, 40 mil anos mostram que o corpo já era objeto de celebração, objeto de ritualização".
Essa conexão, atemporal, dos vivos com seus mortos, para o antropólogo, dá um status quase transcendental a essa relação. "O corpo, de alguma maneira, é sagrado", diz. Nesse contexto, o que essas diferentes cosmovisões pensam a respeito da entrega do corpo para a ciência?
Para o professor, o debate sempre vai ser complexo. Por um lado, há uma necessidade urgente das escolas médicas, no Ceará, inclusive, de cadáveres para os estudos de Anatomia, diante da escassez de corpos nas universidades, situação que pode comprometer a formação dos profissionais de saúde. Por outro, há a relação intangível da família com seus entes queridos. "Jamais haverá uma unanimidade. Ainda que haja um ideal muito nobre por parte da biomedicina, esse discurso não anula outras visões a respeito da morte", defende Tota.
O antropólogo acredita que há, no argumento científico, uma tentativa de objetivação do corpo. Para ele, "além da dimensão dos afetos, existe a dimensão religiosa ou metafísica que pode entrar em choque com a visão da biomedicina. Existe um esforço discursivo no sentido da despersonalização e de dessacralizar o corpo morto".
Para o professor de Anatomia do departamento de Morfologia da UFC, Erivan Façanha, a intenção é oposta. Estudar num corpo humano real é fundamental para "a formação humanística de todos os estudantes da área de saúde". Ele defende que "o estudante vai refletir sobre as nossas fragilidades, sobre as nossas limitações e a nossa finitude".
Religiões e doutrinas
Para os espíritas, o estilo de vida da pessoa deve ser levado em consideração antes de decidir por uma doação. "Não há problema em doar o corpo para ciência se a pessoa é evoluída", explica Kléber Saraiva, antropólogo do departamento de Ciências Sociais da UFC e estudioso do espiritismo.
No caso, "ser evoluído" significa ter vivido de forma desapegada com o corpo e ter tido, em vida, uma "moralidade elevada". Nesses casos, o processo de "desencarne", que é o momento em que o espírito deixa o corpo após a morte física, é rápido.
Por outro lado, se a pessoa tiver sido muito apegada a questões materiais, a doação pode ser um problema e o "desencarne" pode durar dias ou meses. Há relatos, segundo Saraiva, de pessoas cujos espíritos levaram anos para deixar o corpo depois da morte. E, nesses casos, tudo o que acontece com o corpo é sentido pelo espírito. "Na hora em que estiverem mexendo no meu corpo eu vou sentir", observa o espírita.
Para o budismo, a separação entre matéria e espírito também não é imediata. A professora de Medicina da UFC, Paola Torres Costa, especialista em Medicina Tibetana e aluna da escola budista Vajrayana há 20 anos, acredita que o ideal, antes de doar o corpo, é mantê-lo "pelo menos de 24 horas a 48 horas, sem tocar muito, porque, para o budismo, não é a parada do coração e da respiração que caracteriza a morte".
Ela explica que "do ponto de vista da medicina tibetana, há elementos que compõem o nosso corpo: terra, fogo, ar, água e o elemento espaço. Então, depois que você morre, começa a passar pelo que a gente chama de dissolução desses elementos". Para ela, quanto menos o corpo for tocado e mais gradativo for esse processo, mais chances de a pessoa ter um "bom renascimento". Assim, a doação poderia ser realizada, mas após cumprir um período mínimo, após a morte física. Depois, a entrega do corpo para a ciência é até incentivada.
"Cada jovem que aprender com o corpo doado e puder utilizar isso vai fazer uma conexão cármica com essa pessoa. O budismo foca muito em que tipo de benefício você traz com a sua existência e, depois, mesmo que você não exista mais, o corpo ainda continua trazendo benefícios para o outro", explica.
Também é possível traçar paralelos entre a religião oriental com as ocidentais. Entre as semelhanças, há a compreensão do corpo como uma parte material da existência que perde o valor espiritual com a morte. E entre as diferenças, o tempo de transição de um estágio para o outro. Para o cristianismo, após o fim físico, a separação do corpo e alma é imediata.
Separação
Sem a alma, o corpo "volta ao pó" e não há barreiras quanto à sua destinação para a ciência. No catolicismo, uma das primeiras posições oficiais data de 1945. "O Papa Pio XII fez um grande discurso para esportistas italianos, onde disse que, quando o corpo é utilizado com a ética exigida, com responsabilidade, não há nenhum problema, a Igreja não se opõe a isso", explica o padre Ivan de Sousa, pároco do Santuário de Nossa Senhora de Fátima, mestre em educação e saúde e em Teologia.
Para os cristãos Testemunhas de Jeová, a morte, também "significa simplesmente o fim da vida. Se um cristão decide fazer a doação, é uma questão de consciência da parte dele. A Bíblia não dá nenhuma direção sobre esse assunto", esclarece Alex Oliveira, representante de imprensa das Testemunhas de Jeová.
Mesmo pensamento é defendido pelos cristãos evangélicos. O teólogo Victor Breno, dourando em Ciências da religião, esclarece que, para a fé protestante, "o corpo tem um status sagrado porque é criação de Deus. Entretanto, essa sacralidade está associada ao fato de que esse corpo possui o sopro do Espírito de Deus, que é a alma. Acontece que, quando o corpo morre, ocorre a dissociação entre matéria e espírito e o corpo perde esse status de sacralidade".
Nesse aspecto, a doação é vista como uma atitude nobre. "Nós cremos que, através da doação, podemos manifestar a mesma generosidade que houve em Cristo Jesus, que doou seu próprio corpo, a sua própria vida para salvar outras. Então, na doação de órgãos, na doação do corpo, existe uma relação metafórica com a questão do próprio sacrifício, da própria doação de Jesus Cristo", finaliza Breno.