Amigo homem-praça

Escrito por Márcio Dornelles , marcio.dornelles@svm.com.br
Foto: Foto: Márcio Dornelles

Manhã de março de 2018. O cão Pantera dorme o sono dos vagabundos, faça chuva, sol ou terremoto. Skibidu, outro sujeito de latas deitadas e preguiças, é o parceiro de madrugadas, mas não agarra mais o sono com as patas. O tempo maluco pós-chuvas, de calor e brisa, o incomoda mais. A duplinha peluda fica sempre às voltas de um senhor tinhoso. É José Rufino da Silva, o engraxate Pirrita, o homem-praça de tantas histórias.

Ele é de verdade, poético, humano. O amigo, de distantes 15 anos, é a própria Praça do Ferreira, o Centro inteiro, a Fortaleza remendada. Guarda pra si um barulhento mundo, de pele, suor e cimento. Naqueles bancos quentes, já falamos da vida, reclamamos do calor e choramos, um de cada vez.

Conhece gente pra burro, mas prefere os pombos. Descem ao fim da tarde para comer das mãos do velhinho morenamente branquicento. Deixa de alimentar o corpo delgado para comprar milho e ração. O fumo o amacarrona.

Sempre que encosto, dia perdido, recebe-me com a mesma calma com a qual arremata o cigarro, companheiro de esfumaçados 60 anos. O fino sorriso faz as honras da casa. O olhar cismado é sinal de que anda contrariado. Afinal, os três mestiços sempre estão de orelha em pé.

Mestre

Lembro do dia em que o conheci, sentado no trono-caixa de todos os dias, onde guarda as ferramentas e descansa as pernas, com meia-dúzia de anéis, correntes de prata e seu velho cigarro de cinzas suspensas inclinado para o chão. Eu, aprendiz de adulto. Ele, mestre da rua.

O escritório do Pirrita sempre foi parada obrigatória, quaisquer que sejam os compromissos no Centro. Afinal, o malandro mais honesto que conheci sabe mais do miolo da Cidade que de si mesmo. Todavia, não abre mão dos hábitos e dos vícios. Além do fumo, as jogatinas.

Voltas e meia, quando o procuro, está largado pelas esquinas de apostas ou no bingo da Rua Major Facundo. Não perde uma. Já deixou de comprar almoços e jantares para fazer uma 'fézinha'. Sabe o animal que deu no 'bicho' com a mesma precisão reservada aos pombos famintos, que descem às 17h, na calçada em frente ao histórico Cine São Luiz.

Certa vez, acometido por uma implicante pneumonia, sumiu. Ninguém sabia o paradeiro do velho. Os conhecidos mais próximos, ladeados na rotina, procuraram em todos os buracos de jogos de azar. Cheguei a ir no bingo de sempre, com a certeza de que o encontraria por lá, sentado entre as apostas ou filando um cafezinho. Nenhuma cabeça branca era a dele. O gerente de tantos 'bom dias' dava por falta desde o mês anterior.

O fantasma

Descobri, depois de inúmeras ligações, que estava internado em um hospital de Fortaleza, sob muitos cuidados. A traiçoeira gripe, aliada às fumaças no pulmão, derrubou uma das estruturas mais sólidas da Praça do Ferreira. Para provar que era mesmo forte como o cheiro da cola de sapateiro, recuperou-se.

E eis que, durante o desaparecimento repentino de Pirrita, espalharam o boato de que o mesmo havia batido as botas. Mesmo sem a confirmação do causo, fez-se uma muvuca em frente ao seu então local de trabalho. Flores e palavras foram jogadas no trono-caixa de ferramentas. E que ironia da vida. O homem, um dos mais fieis contadores da mítica vaia ao Sol, transformou-se em história.

Desta vez, o grupo não reclamava do astro rei que espantou as nuvens carregadas de chuva, nos idos da década de 40. Saudavam quem sempre fez da própria vida uma fortaleza. Desde então, passou a ser chamado de fantasma pela morte 'não morrida'. Ele sempre ri ao saber da anedota. Sempre. Outro dia me disseram que Pirrita, enfim, tinha deixado entreabertas as latas de cola e graxa, sem apostas na esquina ou colares a chacoalhar no peito esguio. O texto e ele estão assim, conjugados no presente.

Lembro também de um dia pálido, nublado, de clientes raros. A praça se movimentava com a energia tímida das quartas. Era uma manhã dezembrinamente enjaneirada. O amigo olhou para o céu como quem confere o troco do pão, e sorriu com a alma de um dia comum. Eis um homem habilidoso com os silêncios.

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