Do campo ao negócio: a realidade financeira dos jogadores de futebol fora das quatro linhas no CE

As trajetórias de Kerven, Carpegiany e Sonaly são retrato de um cenário onde a informalidade é a regra

Escrito por
Ideídes Guedes ideides.guedes@svm.com.br
(Atualizado às 22:18, em 09 de Junho de 2025)
Legenda: Kerven Duarte, de 30 anos, se divide entre a profissão e a paixão é pelo futebol
Foto: Fotos: Thiago Gadelha e Davi Rocha

No ponto de seis metros quadrados, Kerven Duarte, 30, não consegue se concentrar com as vendas de água adicionada de sais, em Ibaretama, no sertão do Ceará, a 143 km de Fortaleza. Ansioso, espera a visita da equipe de reportagem do Diário do Nordeste combinada para aquela manhã de sexta-feira. Quando avista carros diferentes, acende o sinal de alerta. Foi assim naqueles últimos minutos. Impaciente, resolveu anotar os pedidos que chegavam ‘para o tempo passar mais rápido’. Entretanto, após ver uma movimentação na esquina da rua, sobe na moto e se dirige à equipe jornalística que estava perdida entre os números desorganizados das casas da cidade. Encostou ao lado do carro e se apresentou: “sou o goleiro, o ‘Louro da Água’”.

A família de Kerven é conhecida por uma peculiaridade em Ibaretama. Todos os homens viraram goleiros. O pai, Seu Francisco, o precursor, se autointitula “o melhor já visto nos campos da região”. Desde criança, Kerven tinha o objetivo de jogar profissionalmente. A reputação conquistada no futebol amador era o que mantinha o desejo vivo. A estreia no profissional veio apenas em abril deste ano, de forma inesperada, logo numa partida decisiva da Série B do Campeonato Cearense. Defendeu um pênalti e levou o Quixadá à elite estadual após uma década. 

Legenda: Goleiro é destaque no futebol amador Ibaretama, no sertão do Ceará, a 143 km de Fortaleza.
Foto: Fotos: Thiago Gadelha e Davi Rocha

O celular é o caminho do dinheiro. Os amigos dão suporte gravando vídeos dos melhores momentos de Kerven. Após um compartilhamento e outro nas redes sociais, surgem os convites. Naquele final de semana, Kerven tinha quatro partidas para disputar em dois municípios do sertão cearense. Como preza pela pontualidade, sempre escolhe cidades da mesma região. O custeio da viagem e da alimentação é feito pelo contratante. Atualmente, ganha entre R$400 e R$600 por jogo. O cachê se valorizou após a experiência no Quixinha, fazendo o atleta, em dois dias, ultrapassar o valor do salário mensal que recebia no ex-clube. “Se não tem outro goleiro, eu tomo injeção, enfaixo o pé, a mão e vou para o jogo”, relata.

A rotina é puxada. Acorda cedo e segue até tarde da noite. Quando tem jogo durante a semana, paga um ajudante para ficar no ponto de água. A organização é necessária para conseguir os R$900 mensais, vendendo o garrafão a R$ 5,50. Kerven está na sua segunda tentativa no comércio informal, por sugestão dos amigos, após ter uma venda de frango assado . “Eu ficava enrolando, até que coloquei e vi que era bom”, expõe. Não quer ‘vacilar’ novamente, como faz questão de enfatizar. Mesmo quando está em casa, os pedidos não param. “Tem dia que estou deitado e o pessoal chama. Eu me levanto e vou atender meus clientes”, confessa. 

Apesar da exaustão, o futebol segue sendo prioridade na vida de Kerven. Os treinos acontecem na mini Areninha de Ibaretama, encaixados entre uma entrega e outra. Entre uma delas, virou figura conhecida nas redes sociais, após uma amiga gravar um vídeo enquanto ele trabalhava. “Não sou muito ligado nessas coisas. Fiquei surpreso. No outro dia, recebi mensagens dizendo que eu tinha viralizado. Hoje, aonde eu vou, o pessoal fala: 'Ó, o Louro da Água, o goleiro do Quixadá”, gargalha. 

Entre a bola, a moto e a incerteza

Sonaly Araújo, 36, ainda se recupera de uma lesão na lombar. A dor nas costas persiste há dez dias, interrompendo a rotina tripla de jogadora de futebol, árbitra e motogirl. Do próprio bolso, paga o tratamento numa clínica de reabilitação para atletas no Luciano Cavalcante, bairro de classe média de Fortaleza. Nos últimos meses, também gastou R$ 2,5 mil para o fortalecimento do joelho. “A gente pede cartão emprestado, parcela em 12 vezes, porque não pode ficar parada”, explica. 

Legenda: Sonaly Araújo, 36 anos, é jogadora de futebol, árbitra e motogirl
Foto: Fotos: Thiago Gadelha e Davi Rocha

Cresceu batendo bola com os meninos, escondida do pai, também jogador. A paixão pelo futebol sempre foi mais forte do que a resistência familiar, fazendo Sonaly buscar espaço onde fosse possível, como trocar Mossoró, no Rio Grande do Norte, pela capital cearense. 

Aqui, passou pelos times da Unifor e UniAteneu, ainda no futsal. Pelo Caucaia, conseguiu disputar o Campeonato Brasileiro Feminino Série A1. Recentemente, foi convocada duas vezes para a seleção brasileira de futebol 7, o fut7.

Sonaly nunca conseguiu viver apenas do esporte. Graduada em Marketing, tornou-se microempreendedora individual (MEI) para pagar as contas. Atualmente, alterna os treinos e jogos com entregas de moto pela Grande Fortaleza e atua como árbitra em partidas de base do futebol masculino.

No atual clube, não possui salário fixo. Cada jogo disputado em Fortaleza rende cerca de R$100. No Interior, o valor sobe para R$ 250, ainda insuficiente para garantir segurança financeira. Sonaly sabe que o corpo de atleta tem prazo de validade, especialmente para quem precisa somar horas extras em outras profissões para completar a renda.

Por isso, já pensa em aposentadoria, não das quadras e dos gramados, mas da rotina de incertezas. Quer voltar a estudar e se tornar professora de Educação Física. Ensinar, para ela, seria uma forma de 'continuar próxima do esporte' sem depender da boa vontade de clubes ou da saúde frágil das costas.

Operário da bola

Aos 34 anos, Carlos Carpegiany Nobre de Araújo tem números que impressionam e que ele faz questão de revelar. Já passou por 22 clubes profissionais, rodou 11 estados, acumulou 186 partidas oficiais e marcou seis gols. Ele sabe que o futebol não é para todos por muito tempo. “Eu iniciei através de um sonho de ser um jogador profissional. Hoje eu acordei e me vejo como um operário da bola”, afirma. 

Lateral direito de origem, Carpegiany começou numa escolinha do Conjunto Esperança, na periferia de Fortaleza. Aos 13 anos, foi para a base do Floresta que, para muitos, é a porta de entrada para os garotos da região, onde ficou até 2007. Profissionalizou-se no Pacatuba, da Grande Fortaleza, no ano seguinte. O melhor salário que recebeu em toda a carreira veio em 2016, quando atuava pelo Araguaína, em Tocantins: R$ 6,5 mil. Um valor distante da realidade atual.

Nos últimos cinco anos, Carpegiany migrou para o futebol amador, ficando longe dos estádios lotados e tendo sua imagem veiculada apenas em transmissões de pequenos canais na Internet. “Chega uma certa idade que você entende que a realidade não é mais a mesma. Que aquele sonho de ficar rico do futebol já era. Eu cheguei aos 30 e percebi que, para mim, não dava mais para galgar grandes coisas”, admite.

O atleta construiu nome no futebol do interior cearense, principalmente pelos anos vividos no Vale do Acaraú e na Região Centro-Sul. Ganha de R$150 a R$400 por partida, dependendo da cidade, do campeonato e da amizade com o dono do time. Em fins de semana bons, joga duas ou três vezes em municípios diferentes, às vezes separados por centenas de quilômetros, como Iguatu e Itarema. “Tem final de semana que estou mais dentro de ônibus do que em casa”, conta. Por ser cobiçado entre os clubes da várzea, recebe o pagamento assim que coloca o uniforme, mesmo que jogue um minuto ou mesmo que se lesione. “Se eu piso no município, o Pix já cai na conta”. 

Nos últimos anos, acumulou outra função: empreendedor de bonés personalizados. Iniciou o negócio em 2014, durante a Copa do Mundo, ficou parado na pandemia, e retomou há duas semanas. “A minha meta é vender de 10 a 12 bonés por dia”, afirma. Os produtos vêm de Caicó, no Rio Grande do Norte, e Pombal, na Paraíba. Vende por encomenda, aproveitando a popularidade que acumulou no futebol e nas redes sociais.

“Já passou pela minha cabeça viver só disso. Teve um tempo que o negócio me dava o lucro que eu nunca tinha ganho no futebol. Tirava de R$ 1,5 mil a R$ 2 mil por semana”, lembra. Mas confessa que o maior obstáculo sempre foi a falta de constância. “Se eu tivesse tido a mesma dedicação no empreendedorismo que sempre tive no futebol, eu já estaria muito à frente.”

As trajetórias de Kerven, Carpegiany e Sonaly são retrato de um cenário onde a informalidade é a regra, e o empreendedorismo surge não como escolha, mas como necessidade para quem insiste em viver do futebol em terras cearenses. 

Enquanto a informalidade atingiu 38% da força de trabalho brasileira no último trimestre, o número de pessoas sem vínculo empregatício chegou a 53% no Ceará, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

A Federação Cearense de Futebol (FCF) mantém, atualmente, 50 clubes considerados ativos, que são aqueles que participaram de suas competições nos últimos três anos. De acordo com a entidade, existem times que, embora estejam filiados oficialmente, estão com a documentação irregular e, por isso, não disputam torneios. Dentre os federados, dois são ligas municipais. 

A entidade ressalta, porém, que o número total de campeonatos realizados no Estado é difícil estimar, já que muitas competições, especialmente as de várzea, são independentes e não têm ligação oficial com a FCF. Esses campeonatos seguem suas próprias organizações e regulamentos, o que amplia o cenário esportivo local fora do alcance da federação.

Atleta amador pode ter vínculo reconhecido pela Justiça

A Lei 9615/98, conhecida como a Lei Pelé, organiza o esporte brasileiro e estabelece quatro tipos de manifestações desportivas, abrangendo desde a prática recreativa à profissional. O desporto educacional é voltado para o ambiente escolar, evitando a seletividade e a competitividade entre os praticantes. O desporto de participação busca o lazer, a saúde e a integração dos praticantes, realizado de forma voluntária. Já o desporto de formação, por sua vez, tem como principal função o aperfeiçoamento técnico, o aprimoramento qualitativo e quantitativo da prática do esporte, envolvendo a competitividade e alta competitividade. Por fim, o desporto de rendimento é aquele que pode ser praticado de duas formas: de modo profissional, caracterizado pelo contrato formal de trabalho de atleta e o clube; e de modo não profissional, que não tem vínculo empregatício, sendo permitido apenas o recebimento de incentivos materiais e patrocínios.

Breno Gondim, presidente da Comissão de Direito Desportivo da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Ceará (OAB/CE), esclarece que o atleta amador pode ter vínculo empregatício reconhecido pela Justiça, desde que alguns requisitos estejam previstos pela legislação trabalhista. Essa possibilidade, no entanto, depende dos critérios de pessoalidade, quando o atleta não pode ser substituído por outro em suas atividades; a habitualidade, por conta da prestação contínua e regular do serviço; a subordinação, quando o atleta está sujeito a ordens, regras e fiscalização por parte do clube; e a onerosidade, que não se limita a um salário fixo. “Qualquer tipo de contraprestação financeira, benefício ou vantagem econômica repassada de forma contínua pelo clube ao atleta pode configurar onerosidade, como ajuda de custo, premiações ou patrocínios vinculados à atividade esportiva”, explica.

Segundo Gondim, sempre que houver lesão durante a prática esportiva, a obrigação de assistência recai sobre o clube. “A legislação determina que todos os clubes que mantenham treinamentos com atletas não profissionais, tanto em modalidades olímpicas quanto paralímpicas, devem contratar obrigatoriamente um seguro de vida e de acidentes pessoais, vinculado diretamente à atividade desportiva”.

O principal objetivo desse seguro é oferecer cobertura para os riscos a que os atletas estão sujeitos durante a prática esportiva, garantindo amparo financeiro em caso de acidentes ou lesões. “Essa segurança jurídica proporcionada pela Lei Pelé é fundamental, especialmente para proteger atletas que, embora não sejam profissionais, se expõem aos mesmos riscos físicos das competições”, acrescenta.

O advogado também destaca que a lei permite aos clubes conceder incentivos materiais e patrocínios a esses atletas, mas alerta que essas contrapartidas não podem ser tratadas como remuneração. “O incentivo financeiro deve funcionar como uma ajuda de custo, para compensar as despesas que o atleta tem para competir. Em hipótese alguma isso pode configurar um pagamento pelo serviço prestado ao clube, sob pena de descaracterizar a natureza amadora da relação”.

PL aguarda votação

Parado há cinco anos, o Projeto de Lei 235/20, que permite atletas profissionais possam se registrar como microempreendedores individuais (MEIs), está pronto para ser votado na Câmara dos Deputados. A proposta, de autoria do deputado federal Daniel Freitas (PL-SC), já possui requerimento de urgência assinado e depende, segundo o parlamentar, apenas de ser pautada pela Mesa Diretora da Casa. Atualmente, além das dificuldades em formalizar contratos, muitos atletas enfrentam barreiras para acessar serviços bancários básicos, como abertura de contas, financiamentos e empréstimos, justamente pela falta de comprovação formal de renda. A expectativa do autor do projeto é que a regularização como MEI não apenas simplifique essas questões, mas também abra novas oportunidades para os profissionais do esporte.

Em entrevista exclusiva ao Diário do Nordeste, Freitas afirma que não há resistências públicas ou contrapontos entre os deputados em relação à matéria. “A princípio, dependemos apenas de boa vontade da Mesa. Não há, por ora, nenhum contraponto ou resistência por parte de outros parlamentares”, disse.

Se aprovada, a proposta pode alterar significativamente a realidade de atletas profissionais que atuam fora das grandes federações e clubes estruturados. Conforme o autor, a medida garantiria a esses esportistas maior autonomia sobre suas carreiras. “Hoje, um atleta que não está vinculado a alguma federação sequer consegue abrir uma conta bancária ou negociar seus próprios contratos. Depende de terceiros para tudo”, afirma. Com a possibilidade de registro como MEI, esses atletas poderiam emitir notas fiscais, assinar contratos e buscar financiamentos de forma independente.

Para o parlamentar, a legislação atual é ultrapassada e limita a atuação de milhares de profissionais do esporte, sobretudo em categorias de base, futebol amador e esportes menos midiáticos. “O esportista teria um CNPJ, poderia negociar seus contratos e emitir nota fiscal. Hoje isso é impossível. Com a possibilidade de se tornarem pessoas jurídicas, todos esses entraves burocráticos seriam resolvidos”, explica.

Questionado sobre a fiscalização, Freitas reforça que não seria necessário criar novas estruturas ou mecanismos de controle. “Já há artigos na legislação que endossam e fiscalizam os MEIs. Não há a menor necessidade de mais um entrave estatal em cima dos esportistas que se tornarem MEIs”, pontua.

O Ceará tem demonstrado um crescimento constante na abertura de MEIs, sendo destaque nacional. De acordo com dados do Sebrae, são 457.214 no Estado, um acréscimo de 35% apenas no primeiro trimestre deste ano. 

Os caminhos para garantir o futuro

A analista do Sebrae Ceará, Ana Virgínia Milhome, explica que a gestão financeira deveria fazer parte da rotina dos atletas desde o início da carreira. “A carreira como atleta se encerra quando ainda se é jovem. Por isso, ter conhecimento sobre gestão dos recursos financeiros é importante desde o princípio da jornada”, afirma.

Ela informa que o Sebrae oferece diferentes ferramentas para capacitar os jogadores, como cursos presenciais e à distância, oficinas, seminários e consultorias individuais. “Sempre há a possibilidade de contar com o apoio de profissionais para gerenciar a carreira, mas os riscos são minimizados quando o próprio atleta também acompanha seus resultados financeiros”, completa.

Embora não exista um programa fixo direcionado apenas para atletas, o Sebrae já realizou projetos com grupos de jogadores e ex-jogadores de futebol. A instituição está aberta para atender demandas individuais ou coletivas relacionadas à educação empreendedora e financeira.

Para Milhome, o ideal é que o planejamento para o fim da carreira comece ainda nos primeiros anos como jogador. “Fazendo provisões ou identificando os investimentos mais adequados ao estilo de cada atleta. Se isso não for possível, sempre há a oportunidade de avaliar a situação e se organizar”, orienta.

O Sebrae acompanha diversos casos de jogadores que, ao pendurarem as chuteiras, migraram para o mundo dos negócios. De escolas de futebol a lojas de acessórios esportivos, passando por artigos nutricionais e negócios digitais, as oportunidades são diversas. A instituição também mantém parcerias com sindicatos de jogadores, oferecendo capacitação para atletas e ex-atletas.

Entre os principais desafios para quem decide empreender durante ou depois da carreira estão a definição do negócio, o planejamento financeiro, o plano de marketing, a formalização e a gestão profissional da atividade.

Milhome destaca que o perfil dos jogadores, com visibilidade, networking e, em alguns casos, recursos financeiros acumulados, pode ser um diferencial competitivo no mundo do empreendedorismo. Entre os segmentos mais estratégicos para esses profissionais estão:

  • Negócios esportivos: academias de futebol, clínicas de performance, consultorias e gestão de clubes ou ligas amadoras.
     

  • Setor imobiliário: compra, venda e aluguel de imóveis, especialmente de temporada.
     

  • Moda e estilo de vida: criações próprias de roupas e acessórios ou parcerias com marcas.
     

O mercado esportivo local e regional, especialmente no Ceará, é visto com otimismo pelo Sebrae. “O futebol é uma paixão e há muitas oportunidades porque se lida com sonhos, motivação e lacunas estruturais. Cidades sem infraestrutura adequada abrem espaço para escolinhas, centros de treinamento e academias”, aponta Milhome.

O Sebrae também oferece consultoria individual para atletas interessados em empreender. Segundo a analista, o atendimento orienta desde a escolha do modelo de negócio até planejamento financeiro, marketing e gestão. Além disso, a instituição está aberta para parcerias com clubes e federações que desejem levar conteúdos de educação empreendedora e financeira para seus jogadores.

“Empreender é uma habilidade que pode ser desenvolvida por qualquer pessoa, inclusive atletas. Nosso papel é oferecer o suporte certo para isso”, conclui.

Diversos futebóis 

Radamés Rogério, professor do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Piauí (Uespi), detalha a importância e os desafios do futebol amador no País. Para ele, existem diversos futebóis, com características específicas e ocupando diferentes espaços sociais: o escolar, de rua, de quadra, society, de várzea, amador, profissional e o de espetáculo. O futebol amador é aquele que nasceu na várzea e se institucionalizou, com torneios regulares, pequenas estruturas e até mecanismos financeiros próprios.

“Essa modalidade cumpre um papel fundamental de olhar para o futebol muito além da busca pela glória profissional ou enriquecimento. É um espaço comunitário onde sociedades e pequenos grupos estabelecem e fortalecem seus rituais econômicos, sociais e culturais”, explica.

Quando se fala em futebol profissional, o imaginário popular logo se volta para os milionários jogadores da elite nacional e internacional. Mas a realidade da grande maioria é bem diferente. Dados da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) mostram que, em 2019, o País tinha cerca de 90 mil jogadores profissionais, mas apenas 690 atuavam na primeira divisão, menos de 1% do total.

Conforme Radamés, a ilusão persiste porque o foco midiático está sobre a elite do esporte. “Muitos jogadores enfrentam salários atrasados, contratos curtos, lesões que comprometem temporadas e uma carreira que, em geral, se encerra antes dos 40 anos. Sem estabilidade ou previdência, muitos acabam voltando para o futebol amador como forma de sobrevivência”.

O professor aponta que o futebol amador, em muitas cidades, tornou-se uma alternativa de renda complementar para ex-profissionais e jogadores de categorias inferiores. “Torneios amadores, especialmente no interior, têm calendário fixo e começam a atrair pequenos patrocinadores e apoio político. É um espaço onde circula dinheiro, ainda que em menor escala.”

Ele ressalta, porém, que não se pode generalizar o fenômeno em um país de dimensões continentais e realidades distintas. Mas em todos os casos, o futebol amador reflete as desigualdades sociais e econômicas brasileiras. “Hoje, os campos de várzea estão ameaçados pela especulação imobiliária nas grandes cidades, e a luta pelo direito a esses espaços é permanente”, afirma.

Para Radamés, o futebol amador funciona como um importante equipamento social nas comunidades. É gratuito, próximo das casas e oferece lazer, integração social e cuidado com a saúde. “Esses campos só continuam existindo porque as comunidades brigam por eles. São locais essenciais para o entretenimento e construção de identidade coletiva”, destaca.

Além disso, os jogadores amadores exercem um papel simbólico. Representam suas comunidades e ajudam a construir o sentido de pertencimento local. “Participar de um time é algo que passa por uma aceitação social. Não é qualquer um que chega e joga. Há relações de respeito e reconhecimento, seja em campeonatos organizados ou no futebol de final de tarde”, explica.

O professor também chama atenção para a mobilização social e econômica em torno do futebol amador. “Nos jogos, além do esporte, existe o comércio de dindim, cerveja, uniformes, chuteiras, pequenos pagamentos para jogadores convidados e organização de eventos. Tudo isso movimenta a economia local e fortalece a cultura popular”.

Ele alerta ainda que, embora o futebol amador ofereça oportunidades simbólicas e sociais, as chances de transformação econômica permanecem limitadas. “Há casos pontuais, mas não se pode romantizar. O futebol amador é, sobretudo, um território de cultura, pertencimento e resistência das periferias e cidades pequenas contra a desigualdade estrutural do País”.

Radamés defende que a continuidade do futebol amador é, antes de tudo, um ato de resistência cultural e política. “Nada que pertença às classes populares se mantém sem resistência. A preservação dos campos e dessa prática é resultado da luta comunitária por lazer, identidade e ocupação do espaço público”.