Café Comércio: o que a ocupação de casarão histórico no Centro de Fortaleza ensina sobre patrimônio
No Centro de Fortaleza, logo em frente ao portão principal de entrada do Passeio Público, um imóvel desponta como o mais recente exemplo da ligação entre passado, presente e futuro: ao número 207 da rua Dr. João Moreira, o Edifício Antônio Gomes Guimarães reúne não apenas diferentes tempos, mas também ensinamentos sobre preservação histórica.
Das primeiras ocupações residenciais do prédio, que datam de meados do século XIX, aos célebres usos como hotel ao longo do início do século XX, o casarão está há dois meses funcionando como o Café Comércio.
A partir de uma iniciativa do Sistema Fecomércio Ceará, por meio do Senac, o prédio tombado em nível municipal desde 1994 abriga desde o final de junho a cafeteria e, a partir do ano que vem, deve acolher também o futuro Centro Cultural Sesc.
Entre os desafios e especificidades de restauro de um prédio histórico tombado aos impactos de ocupar um imóvel como este no Centro da Cidade, o Verso propõe um olhar para o que Fortaleza e fortalezenses ganham quando casarões são ocupados, restaurados e preservados a partir da ação conjunta entre iniciativa privada e poder público.
De residência a hotel
Conforme registros históricos do Instituto do Ceará, o primeiro imóvel construído no terreno foi um sobrado pertencente a Odorico Segismundo de Arnaut, erguido em meados do século XIX. O local, inclusive, foi a primeira sede provisória do Liceu do Ceará.
"O sobrado (...) foi mais tarde demolido, e em seu lugar se levantou o sobrado dos herdeiros de Dario Teles de Menezes (sic)”, escreveu o historiógrafo cearense Antônio Bezerra (1841-1921) na Revista do Instituto do Ceará em 1895, citado pelo historiador Mozart Soriano Aderaldo (1917-1995) em texto da mesma publicação datado de 1959.
“Essa edificação, no formato que está hoje, começou a ser construída mais ou menos em 1870, 1880”, explica a arquiteta Christiane Caldas, coordenadora de infraestrutura do Sistema Fecomércio e responsável pelo projeto de restauro do edifício.
O período coincide com aquele em que o Centro de Fortaleza recebeu atenção especial em termos de ordenação e embelezamento urbano, como explica o professor de História da Universidade Federal do Ceará Sebastião Ponte.
“Por ser a moradia das elites e camadas médias, lugar do comércio, das repartições públicas, dos principais logradouros e dos equipamentos de lazer, foi o espaço exclusivo das reformas urbanas modernas da época”, aponta.
Na região, uma via em especial despontava em importância: justamente a rua Dr. João Moreira. Morar ou se estabelecer nela, define o professor, “passou a ser sinônimo de status social na Fortaleza de então”,
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Construções de espaços como a Santa Casa de Misericórdia, nos anos 1860, ou o Passeio Público e a antiga Estação Ferroviária, nos anos 1880, atraíram “a construção de ricas residências como a da família Teles de Menezes e de suntuosas edificações como a que abrigou a Sociedade União Cearense, depois o Grande Hotel do Norte e que hoje sedia o Museu da Indústria”, segue Sebastião.
Ainda segundo Mozart Soriano Aderaldo, o imóvel da família Telles de Menezes foi posteriormente ocupado, durante a década de 1890, pelo Clube Cearense, considerado o primeiro do tipo de Fortaleza.
O uso mais marcante do edifício, no entanto, se deu no século XX, quando ele foi transformado em hotel. Foram dois os negócios do tipo que se instalaram lá: primeiro o Hotel de France, que funcionou entre 1906 e 1925, e o Palace Hotel, inaugurado em 1927 e instalado no local até a década de 1970.
Exemplo da arquitetura neoclássica
Ao longo das décadas e dos diferentes usos, o imóvel foi adquirindo novas configurações espaciais. À casa original da família Telles de Menezes, por exemplo, o Hotel de France anexou uma residência de fundos nos anos 1900.
Já com o Palace Hotel, com novos acréscimos de imóveis laterais e de fundos, bem como a construção de novos pavimentos, o casarão estabeleceu-se na forma atual na década de 1940.
Finalmente, em 1973, o prédio foi adquirido pela Associação Comercial do Ceará para funcionar como sede da entidade. Arquitetonicamente, ele funciona como uma espécie de relicário que guarda, em si, características de tempos distintos.
“A gente encontra nesse prédio técnicas construtivas diversas e de épocas diversas, também, o que é muito interessante”, aponta Christiane.
Segundo a arquiteta, o casarão é classificado arquitetonicamente como neoclássico por aspectos como as esquadrias, os elementos pictóricos florais feitos à mão e medalhões na fachada emulando rostos de leões, por exemplo.
Mesmo com os diferentes trabalhos realizados na estrutura, o professor Sebastião ressalta que o prédio “preservou suas harmoniosas linhas neoclássicas originais”. Elas, inclusive, constam na proposta de tombamento municipal do casarão, ocorrido em 1994, bem como o resumo dos usos ao longo do tempo.
O edifício foi tombado por meio da Lei nº 7.669/1994, após projeto apresentado pelo então vereador José Carlos (Cacá), cujo texto ressaltava: “(...) preservado em suas linhas neoclássicas, como outros palacetes que enriqueceram a paisagem de Fortaleza no fim do século XIX e início do XX, é um testemunho vivo da história da Cidade”.
Uma vez tombado, o casarão foi oficialmente batizado de Edifício Antônio Gomes Guimarães. Como explica Diego Amora, coordenador do patrimônio histórico e cultural da Secretaria da Cultura de Fortaleza, “o tombamento do edifício, portanto, se baseou em seu valor histórico, cultural, simbólico e arquitetônico, consolidando sua relevância no patrimônio de Fortaleza”.
Café Comércio: novo uso em diálogo com o passado
Toda essa história culmina, agora, na abertura do prédio para o grande público. Até pouco tempo atrás, o edifício seguia sendo utilizado somente como sede da Associação Comercial do Ceará.
Foi da entidade, inclusive, que partiu o convite que resultaria no Café Comércio. “O prédio estava semiocupado, a associação não precisava mais da ocupação total e achou que talvez pudesse ser de interesse da Fecomércio”, explica Vanessa Santos, consultora de Gastronomia do Senac.
O contato ocorreu há cerca de dois anos e, de lá para cá, a ideia de apostar em abrir um café no local veio se construindo a cada nova pesquisa histórica e arquitetônica. “Desde as primeiras equipes que entraram e foram estudando a atuação do prédio, a gente foi formatando a ideia”, afirma.
“Esse tipo de negócio esteve muito presente naquela região da cidade e naquela época. A gente sabe que aquele prédio foi socialmente muito utilizado. Inclusive, continuamos descobrindo situações em que ele fez parte da rotina social”, aponta a consultora.
Pautar as decisões a partir da própria história do imóvel ajudou não só na escolha de uma cafeteria, mas também no próprio processo de restauro e obras estruturais do casarão. “A gente o tempo inteiro entendeu que nós tínhamos que nos adaptar ao local, e não o local a nós”, resume Vanessa.
“Sempre foi o nosso propósito desde o princípio: respeitar. Não é nem ‘revitalizar’. A gente queria deixar do jeito que o prédio era”, reforça a profissional. A ideia é ecoada por Christiane, que assina o projeto e coordenou o processo de restauro junto de empresas especializadas.
“A arquitetura do prédio já ditou as regras, ela nos disse disse assim: ‘Aqui eu vou ser uma confeitaria, aqui eu vou ser o seu salão’. Porque já tinha essa disposição espacial, a gente só fez seguir, tendo respeito à configuração do espaço”, resume a arquiteta.
Edificação interna bem preservada
“Quando surgiu a proposta para o Sistema, fomos convidados a fazer uma avaliação. Existe uma legislação urbanística e uma de patrimônio, que incidem no prédio e norteiam todo o projeto”, inicia Christiane.
“Um projeto normal tem passos técnicos mais rápidos, mais precisos. Quando você vai entrar num projeto de prédio tombado, ele tem que passar por uma análise, existe um regramento”, explica a arquiteta.
O processo, acompanhado pelo Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Histórico-Cultural (Comphic) — órgão colegiado ligado à Secultfor e responsável pela política pública de patrimônios materiais e imateriais —, incluiu levantamentos de características físicas e danos reparáveis e irreparáveis, descobertas de móveis antigos e de pinturas feitas à mão, por exemplo.
“Quando enviamos o projeto para análise, eles nos deram uma devolutiva solicitando documentos, como o mapa de danos, que é uma grande leitura do prédio informando as características que estão agora, patologias, o que está preservado, o que não está, problemas técnicos, estado das esquadrias. Tudo foi mapeado”
De acordo com Christiane, a área do casarão referente à residência da família Telles de Menezes era a com melhor estado de preservação em relação ao restante, ainda que em estado de conservação ruim, com infiltrações, cupins e outras deteriorações.
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“Aqui em Fortaleza, especificamente aqui no Centro, não se tinha uma uma edificação, um casarão que tivesse uma qualidade interna tão bem preservada”, avalia a arquiteta.
A principal parte do café, incluindo a recepção, a confeitaria e o salão principal, são do primeiro imóvel. A existência de empreendimentos hoteleiros, inclusive, ajudou na escolha do que iria em cada cômodo na cafeteria. “Como lá já tinha sido hotel e tinha área de refeições, meio que estava organizado para ser um café”, explica.
Os banheiros também são, hoje, onde era outrora. “Apenas reformamos internamente porque estavam deteriorados”, diz ela. A principal “novidade”, considera, foi onde hoje é a cozinha do Café Comércio.
Por demandar muita intervenção de infraestrutura, ela foi instalada em uma das áreas mais descaracterizadas. “Era um salão de festas, só tinha as paredes, e aí transformamos”, aponta Christiane.
O que foi descoberto, preservado e modificado no projeto do Café Comércio
Entre os espaços posteriormente anexados, alguns estavam melhor preservados, como no caso da sala à direita da recepção. Além de funcionar como local de espera em caso de fila, o espaço tem uma exposição fixa que conta a história do casarão.
Além das escolhas de onde iria cada cômodo, aspectos materiais também são norteados pelas questões de preservação. Tintas usadas, por exemplo, precisam ser do tipo mineral, para não agredir as possíveis camadas anteriores de pinturas feitas ao longo dos anos.
A “revelação” dessas camadas, por sua vez, ocorre a partir do processo conhecido como prospecção pictórica, também demandado pelo Comphic. A partir dela, as equipes de trabalhos vão, em termos leigos, “raspando” áreas específicas das pinturas para revelar se há outras camadas por debaixo.
“Nisso, nós descobrimos (na recepção) pinturas à mão feitas na época do Palace Hotel, em torno da década de 1920”, exemplifica. Houve, então, solicitação à diretoria da Fecomércio para efetivar o restauro completo delas.
“Essa arte descoberta, que é esse floral de crisântemos do hall de recepção, virou o símbolo gráfico do café: virou a marca do nosso cardápio e fizemos uma versão para decoração nas áreas dos banheiros”, ilustra Christiane.
Na confeitaria e no hall do banheiro feminino, duas cristaleiras de madeira chamam a atenção pela imponência. As duas já estavam no local e foram asseadas e envernizadas para terem utilidade no café. É possível discernir, no topo delas, o monograma “PH”. “São da época do Palace Hotel”, explica.
No trabalho, há também exemplos do que Christiane define como a busca por “alinhar as necessidades técnicas da atualidade com a preservação das características do imóvel dentro do regramento da lei”.
Caso do sistema de combate a incêndios, que tem tubulações expostas para evitar descaracterizar o forro do imóvel, e da rampa de acessibilidade. Para essa última, o projeto aproveitou que havia uma única porta da fachada, mais à direita, que fica no mesmo nível da calçada.
O que Fortaleza ganha quando a História é preservada
Da relação emocional e de autoestima com a própria Cidade à movimentação do público em uma área estratégica como o Centro, a experiência do Café Comércio mostra na prática como a ocupação de imóveis históricos com novos usos fortalece movimentos de restauro e salvaguarda patrimonial em Fortaleza.
Um dos aspectos centrais é o do estímulo do interesse do fortalezense pela própria História, concretizado na cafeteria na área de exposição de informações sobre o casarão. Nela, uma linha do tempo mostra pontos altos dessa ocupação ao longo das décadas.
“Fizemos essa sala justamente porque demos tanta importância para isso (no processo) que a gente não poderia desconsiderar. Talvez essa exposição com o tempo se modifique e a gente coloque outros nomes e informações. A gente quer que aquilo o tempo inteiro seja uma sala de aula”, define Vanessa.
Estimular o interesse da população pela edificação vai além do campo histórico e ocorre, também, no “ponto de vista emocional”, acrescenta a consultora. “As pessoas se emocionam de estar lá dentro. Nós vimos pessoas chorando, emocionadas e a fala delas é justamente ‘é um lugar com o qual eu tenho relação’”, destaca.
“Tivemos movimento absolutamente todos os dias, mas a gente ainda não tem certeza se se mantém abrindo todos os dias, porque era férias. Nós fomos, de fato, um ponto de visitação de férias, o que nos deixou muito felizes”
Em termos de público, a especialista destaca a adesão da clientela nos primeiros meses ao café e ao cardápio proposto, ainda em construção e baseado em especial nos costumes cearenses da hora da merenda.
“Contar e salvaguardar a história do Centro é uma missão muito bonita”, resume a consultora. Essa intenção, inclusive, deve ser ainda mais potencializada a partir da relação com casarões e iniciativas vizinhas.
Há espaços como o Mercado Central de Fortaleza e a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Nos arredores da própria rua Dr. João Moreira, há o Passeio Público, com o Café Passeio; e o Museu da Indústria, com o restaurante Aconchego.
Já um pouco depois, despontam o Centro de Turismo do Ceará e o recente complexo cultural que inclui a Praça da Estação, a Estação das Artes e a Pinacoteca do Ceará, por exemplo.
“A ideia é que aquela rua vire um corredor. Pretendemos, depois de estar tudo solidificado e arrumado direitinho, desenvolver atividades na rua contando com o Sesc, com o Museu da Indústria”, adianta Vanessa. “Não há concorrência, há conjunção, adição. Isso é outro sentimento altamente positivo que nós conseguimos alcançar”, ressalta.
Lembrando do nível de preservação interna e externa do casarão, Christiane dialoga com Vanessa ao destacar o resgate e a manutenção da memória da Capital a partir do projeto.
“Nós temos grandes prédios aqui cujas fachadas ainda estão muito boas, mas que os usos foram deteriorando tanto internamente que você já não conseguia ver características mais originais. Essa edificação, não. Ela tem o diferencial de que estava realmente muito bem preservada”
“As pessoas da área de patrimônio público, quando vinham fazer as visitas, não imaginavam que estava desse jeito e ficavam impressionadas e muito agradecidas, porque de fato é um presente para a Cidade ter um casarão como este tanto pelo contexto da arquitetura em si, quanto pela história dele nessa área urbana”, sustenta.
A reflexão é alargada pela secretária da Cultura de Fortaleza Helena Barbosa, que define como “essencial” a atuação conjunta entre poder público e iniciativa privada em prol da preservação do patrimônio.
“Essa parceria mostra que é possível, sim, conciliar desenvolvimento econômico e valorização da memória da cidade. O tombamento cultural, como instrumento de proteção, não se restringe a edificações públicas: ele também pode recair sobre imóveis privados, exigindo dos proprietários o compromisso com a conservação e o respeito aos elementos característicos da edificação”, lembra a gestora.
Para ela, “diálogo transparente” e “articulação técnica” são aspectos centrais para processos do tipo, “viabilizando soluções que sejam vantajosas para ambas as partes”.
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“Quando há entendimento mútuo, a cidade ganha: surgem novos espaços restaurados, com usos compatíveis e significativos, que mantêm viva a memória urbana e fomentam a ocupação responsável do território”, defende.
Espaços como o Café Comércio, aponta Helena, “geram renda, movimentam a economia local e, ao mesmo tempo, ativam a história da cidade”, além de fortalecer “o vínculo afetivo da população com o espaço, gerando um sentimento de pertencimento e ampliando o interesse coletivo por sua proteção”, destaca.
“Reocupar e valorizar o patrimônio histórico não é apenas possível, mas também desejável — especialmente quando guiado por um compromisso genuíno com a história e identidade da cidade. É nesse equilíbrio entre memória, uso e inovação que Fortaleza se fortalece como cidade viva, plural e conectada com seu passado e seu futuro”, finaliza a secretária.