'Fiz 20 queixas contra ele': 40% das mulheres atendidas na Defensoria são violentadas há mais de 6 anos

De janeiro a setembro de 2023, o Nudem contabilizou 7.844 atendimentos às mulheres vítimas de violência doméstica, desde ações judiciais acompanhadas pela Defensoria até atendimento de equipe psicossocial

Escrito por Emanoela Campelo de Melo , emanoela.campelo@svm.com.br
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Legenda: O filho do casal teria ligado para a mãe e pedido que ela não fosse ao trabalho, alertando: "o pai vai te matar".
Foto: Unidade de Arte/DN

Como romper um ciclo de violência? Na vida de Neide, 42, (nome fictício), foram quase 20 anos até ela conseguir se desvincular do ex-marido. Mas mais do que o tempo sob ameaça, ela precisou abdicar do convívio com dois filhos, com a mãe, com a irmã, do patrimônio construído pelo casal e da vida pública. Reaprendeu a viver "um dia de cada vez" e com medo de ter o paradeiro descoberto por aquele que desde os três meses de casada passou a violentá-la emocional e fisicamente.

Neide mudou de rumo e de estado. Assim como ela, conforme a titular do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Ceará, defensora pública e associada da ADPEC, Anna Kelly Nantua, pelo menos 40% das mulheres que passam pelo programa são violentadas por, pelo menos, seis anos, dentro de casa, até conseguirem buscar ou aceitar ajuda.

"Fiz 20 queixas contra ele. Eu fazia o B.O, mas ia lá retirar. As pessoas diziam que se eu me separasse eu ia ficar falada. Ele dizia que se eu deixasse ele, ele me matava e matava os nossos filhos", conta.

De janeiro a setembro de 2023, o Nudem contabilizou 7.844 atendimentos às mulheres vítimas de violência doméstica, desde ações judiciais acompanhadas pela Defensoria até atendimento de equipe psicossocial. 2022 fechou com quase 10 mil registros.

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'SOFRO VIOLÊNCIA ATÉ HOJE'

Quando a mulher começou a ser agredida e contou sobre a situação à família, não recebeu o apoio esperado. Quando buscou a delegacia, em Pernambuco, pela primeira vez, só foi recebida por policiais homens que, segundo ela, teriam a desencorajado de denunciar.

"Eu precisava de ajuda. As pessoas pensavam, até ali, que ajuda era só a financeira, mas não era isso. Precisa me desvincular emocionalmente dele. Enquanto isso, ele dizia que se eu deixasse ele, ele me matava e matava os filhos".

Em meio a uma rotina violenta, veio a terceira gestação. Em 2014, nasceu a terceira filha do casal: "quanto mais o tempo passava, mais ele ficava violento".

A vítima conta que em 2015 o esposo se envolveu com uma funcionária do casal e ele decidiu ir embora. Foi quando ela se viu sozinha com três filhos, mas acreditou que era ali era a retomada da sua liberdade.

Não demorou até que ela soubesse que 'por aí', o ex-marido vinha dizendo: "se eu pegar ela com alguém, eu mato".

"Eu fui atrás de refazer minha vida, criar meus filhos, mas ele ainda ia para o meu trabalho, me batia lá. Eu estava separada dele de corpo, mas ele fazia o que queria comigo e ia embora. Em 2019 as ameaças multiplicaram. Mudei de endereço e ele foi para lá ser meu vizinho. Ele achava que eu só sobrevivia porque tinha outro homem".

Ela recorda do dia em que o agressor passou a ameaçar os clientes. O filho do casal teria ligado para a mãe e pedido que ela não fosse ao trabalho, alertando: "o pai vai te matar".

FILHOS QUE PRESENCIAM AS AGRESSÕES

A Defensoria contabiliza que 61% das mulheres atendidas no Nudem, os filhos delas também presenciaram as agressões. Conforme Anna Kelly, "são comuns relatos delas apontando que os filhos ficam emocionalmente doentes por presenciarem os atos de violência dentro de casa".

"Passei seis meses sem sair de casa. Minhas vizinhas que faziam supermercado para mim. Em 2020, com a pandemia, as coisas ficaram mais difíceis ainda. Ele invadiu meu apartamento e eu pensei que ia morrer. Peguei minhas roupas, as roupas da minha filha e saí do estado. Se eu ficasse eu ia morrer. Me senti coagida com toda a situação"
Neide, mulher vítima de violência

Ainda em 2020, quando resolveu passar pelo Ceará, Neide conheceu a Casa da Mulher Brasileira: "quando eu cheguei lá a minha vida mudou. Eu passei pelo psicossocial, fui para a Defensoria. Elas que me orientaram em tudo. Passei por tratamento com psiquiatra, com psicólogo, fui assessorada mesmo e depois encaminhada".

A vítima segue com endereço sigiloso, mas não se arrepende da distância forçada com o restante da família: "só me arrependo de não ter tomado uma atitude antes, porque no fim das contas quem mais sofre com tudo isso são os filhos. Eu vivo um dia de cada vez".

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